Fonte: Conjur
A Suprema Corte do Reino Unido decidiu, nesta
quarta-feira (4/7), que o direito de não se autoincrminar não é absoluto. Ele
pode ser afastado, por exemplo, em casos cíveis que envolvem propriedade
intelectual ou informações com conteúdo comercial. Nesses, o acusado pode ser
obrigado a revelar a verdade. A decisão coloca fim a uma batalha judicial de 20
meses, em que o investigador particular Glenn Mulcaire, envolvido no
"escândalo de grampos ilegais", que resultou no fechamento do
tabloide News of the World,
defendeu seu direito de não apresentar, em ações cíveis, provas que poderiam
incriminá-lo em uma ação penal.
A decisão unânime da Suprema Corte do Reino Unido obriga o
investigador particular a informar à demandante Nicola Phillips, consultora de
relações públicas da Max Clifford Associates (MCA), quem o instruiu para
interceptar as mensagens deixadas em seu celular e nos de seus clientes,
membros da realeza britânica e celebridades. Uma das questões perante a Corte,
segundo o relator do processo, Lord Walker, era verificar se a revelação dos
nomes dos jornalistas do tabloide que teriam participado do esquema iria
caracterizar a prática de "delitos relacionados", como o de
conspiração, pelo investigador. A outra questão era decidir sobre o significado
das palavras "procedimentos para violação de direitos pertencentes a (...)
propriedades intelectuais", escreveu o relator.
A Suprema Corte acatou as alegações de Nicola Phillips de que as
mensagens interceptadas pelo investigador continham informações comerciais
confidenciais, que podem ser enquadradas dentro do amplo e esparso entendimento
do que é propriedade intelectual. Esse entendimento não se aplicaria, disse o
relator, a informações particulares, mesmo que fossem confidenciais. "Um
segredo sobre a vida privada de uma pessoa, como, por exemplo, uma doença
terminal que uma celebridade não quer que chegue ao conhecimento público, não
seria protegido pela legislação, nem que sua divulgação — mesmo que haja quebra
de confiança — resulte em vantagens financeiras para a mídia", escreveu
Lord Walker.
De acordo com a decisão, é preciso haver uma "conexão
suficiente" entre a matéria em questão nos procedimentos cíveis provocados
pela demandante e o delito que leva o demandado a ter receio de uma possível
acusação em processo penal. A legislação do Reino Unido prevê que o delito deve
ser cometido até ou durante o curso da violação, à qual os procedimentos cíveis
se referem, a não ser que o delito envolva fraude ou desonestidade – nesse
caso, mesmo uma conexão vaga seria o suficiente. Quanto ao "delito
relacionado" em questão, a Corte acredita que "está bem estabelecido
que a conspiração é um delito continuado".
"Uma conspiração envolve um acordo expresso ou implícito.
Um acordo conspiratório não é um contrato, não é legalmente obrigatório, porque
é ilegal. Mas, como um acordo, ela tem três estágios: 1) a elaboração ou
formação; 2) a execução ou implementação; 3) o cumprimento ou a rescisão.
Quando um acordo conspiratório é feito, o delito da conspiração é realizado,
foi cometido, e os conspiradores podem ser processados, mesmo que a operação
não tenha se concretizado. Mas o fato de que o delito da conspiração é
executado nesse estágio não significa que o acordo conspiratório está
terminado. Ele não está morto. Está em execução e bem vivo. Enquanto a execução
continuar, está em operação, está sendo conduzida pelos conspiradores e é
governada ou influenciada, em qualquer grau, por suas condutas. O acordo
conspiratório continua em operação e, portanto, em existência, até que seja
cumprido (rescindido), pela conclusão da execução ou pelo abandono ou
frustração, o que seja", escreveu Lord Walker.
O relator argumentou: "Se o Sr. Mulcaire conspirou com uma
ou mais pessoas para interceptar as mensagens de telefones celulares, um delito
foi cometido quando o acordo ilegal foi feito. Mas o delito continuou pelo
tempo em que o acordo foi executado. Cada interceptação resultante do acordo
ilegal estaria no curso da violação". (...) "Por essas razões, eu
rejeitaria essa apelação", concluiu.
Histórico
Segundo a decisão da Suprema Corte, em janeiro de 2007, o investigador Glenn
Mulcaire e o jornalista do News of the World, Clive Goodman, foram
processados e admitiram a culpa pelo delito de interceptação de mensagens
telefônicas de membros da realeza. Mulcaire foi sentenciado a seis meses de
prisão e Goodman a quatro meses. No período de 2008 a 2010, um grande número de
ações cíveis foram movidas contra o jornal, sendo algumas delas contra
Mulcaire, alegando que mensagens em seus telefones celulares foram grampeadas
ilegalmente.
Em 10 de maio de 2010, a consultora de relações públicas Nicola
Phillips, que trabalha para Max Clifford Associates (MCA) processou a News
Group Newspapers, a editora do jornal, pelo mesmo motivo: mensagens
interceptadas em seu celular. Em 12 de outubro de 2010, ela pediu a um tribunal
de recursos para acrescentar Mulcaire como demandado, a fim de obter uma ordem
judicial que o obrigasse a fazer uma declaração testemunhal revelando uma série
de informações, incluindo a identidade de quem o instruiu a interceptar
mensagens. Mulclaire se opôs ao pedido, com base no direito de não se
autoincriminar. Mas o tribunal de recurso acatou o pedido de Nicola. Ele apelou
à Suprema Corte do Reino Unido, que manteve a decisão do tribunal de recursos.
Consequências
Mulclarie chegou a discutir com seus advogados a possibilidade de levar o caso
à Convenção Europeia de Direitos Humanos. Mas um de seus advogados disse à BusinessWeek que as informações solicitadas serão
disponibilizadas em duas ou três semanas. O advogado de Nicola, Mark Lewis,
disse que a decisão é aplicável a muitos outros casos. E o mais provável é que
todos terminem em acordos, incluindo o de sua cliente. Até agora, a News Corp.
já pagou mais de $ 258 milhões de liras (R$ 800 milhões) em acordos para
encerrar uma dúzia de ações cíveis.
Clique aqui para ler a decisão em inglês.
João Ozorio de
Melo é correspondente da revista Consultor
Jurídico nos
Estados Unidos.
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