quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Artigo - Perdão Judicial no CTB


Da aplicação do perdão judicial na hipótese de homicídio culposo tipificado no Código de Trânsito Brasileiro

Pedro Ribeiro Agustoni Feilke

14/10/2010

Põe-se em pauta a discussão, pela dogmática jurídica moderna, a respeito da aplicação do perdão judicial em relação ao homicídio culposo, disciplinado no §5º do art. 121 do CP, quando este delito for aquele tipificado no art. 302 do CTB, o qual possui a seguinte redação:

“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor”.

Na esteira da discussão estabelecida, verifica-se a existência de duas fortes e igualmente bem revestidas de argumentos correntes doutrinárias. A primeira capitaneada pela opinião valorosa de Rui Stoco e Luiz Régis Prado, considera impossível, por ausência de legalidade expressa, a aplicação “analógica” do perdão judicial.  A segunda, da qual um dos maiores expoentes é o professor Damásio de Jesus, aceita a utilização do perdão judicial, pelos argumentos que oportunamente verificaremos.

Data vênia a divergência instaurada, considero a questão nitidamente clara no sentido de que o perdão judicial é plenamente aplicável ao caso de homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor, conforme predito no artigo anteriormente colacionado, alinhando-me, portanto, ao entendimento da segunda corrente.

Opiniões contrárias sustentam-se sob o argumento de ausência de expressa previsão legal para o perdão judicial no caso enunciado, e, sendo o aplicador da lei adstrito ao Princípio da Legalidade, não poderia aplicar o referido instituto por analogia ou extensão indevida. Também, é asseverado que o perdão judicial em caso de delitos de trânsito seria disposto de acordo com a orientação do art. 300 do CTB, o qual restou vetado, impedindo, assim, sua aplicação no caso aludido.

Tais alegações são, a meu ver, inconsistentes com o ordenamento jurídico pátrio, não possuindo procedência se melhor analisados.

Primeiramente, há que se considerar que o veto presidencial feito ao art. 300 do CTB, deveu-se, precipuamente, pela abrangência maior dada ao §5º do art. 121 do CP, e, tendo em vista que a legislação mais benéfica possui prioridade para aplicação no Direito Penal, o art. 300 tornar-se-ia despiciendo. O artigo vetado possuía a seguinte redação:

“ Art. 300. Nas hipóteses de homicídio culposo e lesão corporal culposa, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem, exclusivamente, o cônjuge ou companheiro, ascendente, descendente, irmão ou afim em linha reta, do condutor do veiculo."

Ora, resta clara a maior abrangência do §5º do art. 121 do CP, uma vez que este, ao contrário do art. 300 do CTB, não faz qualquer menção à exigência de os atingidos pelo resultado serem os qualificados no texto do Código de Trânsito, albergando, desta forma, um contingente maior de enquadráveis ao perdão judicial. Este foi o objetivo do veto presidencial, como vemos da mensagem nº 1.056, de 23 de setembro de 1997, que assim considerou:

"O artigo trata do perdão judicial, já consagrado pelo Direito Penal. Deve ser vetado, porém, porque as hipóteses previstas pelo § 5° do art. 121 e § 8° do artigo 129 do Código Penal disciplinam o instituto de forma mais abrangente."

Conforme se observa, lógica e juridicamente correto o raciocínio expresso na mensagem de veto. Entendimento diverso acarretaria em ofensa frontal ao princípio da igualdade, oferecendo tratamento diverso ao mesmo delito, o que é constitucionalmente vedado. Situação outra é a da discussão acerca da constitucionalidade da diferenciação, em termos de penas mínima e máxima, do crime de homicídio culposo quando praticado por condutor de veículo. Tal celeuma possui uma complexa ponderação de valores, estando a doutrina dividida em tal tópico, que, por não ser o foco do trabalho aqui desenvolvido, não será mais profundamente analisado.

Certo é que, sintetizando o supra exposto, consideramos teleologicamente o veto ao art. 300 do CTB como mais um argumento pela aplicabilidade do perdão judicial ao caso estudado. Entretanto, faz-se mister o uso de um argumento jurídico de relevante importância. A intelecção do art. 291 do CTB ilumina o caminho a ser seguido:

“Art. 291. Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, se este Capítulo não dispuser de modo diverso, bem como a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que couber.”

A ligação entre o direito penal e o Capítulo XIX do CTB, que trata dos crimes de trânsito é intrínseca e indissociável. No caso do crime tipificado no art. 302 do CTB, ocorre a hipótese, segundo melhor doutrina, de crime remetido. Assim esclarece a este respeito o doutrinador Rogério Greco:

“Diz-se remetido o crime quando o tipo penal remete o intérprete a outra figura típica, para que ele possa ser entendido e aplicado”[1]

Melhor fundamentando, o ilustre professor Damásio de Jesus divide os crimes remetidos em duas categorias. A primeira é relativa àqueles que mencionam o número do artigo de outra lei incriminadora. Identifica a segunda alternativa quando a referência a outro crime é feita “mediante inserção do "nomen juris" da infração penal no delito autônomo. Ex.: a Lei de Tortura (Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997), no art. 1º, § 3º, 1ª parte, definindo infração qualificada pelo resultado, faz referência a "lesão corporal grave ou gravíssima", obviamente aludindo ao art. 129, §§ 1º e 2º, do Código Penal. De modo que, se o sujeito, torturando a vítima, produz-lhe lesão corporal grave ou gravíssima, é necessário ir àqueles dispositivos verificar o que por elas se deve entender. Assim, aqueles dois parágrafos do art. 129 passam a fazer parte do crime qualificado de tortura.”[2]

Desta forma, segundo o entendimento de Damásio, estamos diante de um caso de crime remetido, no qual o delito de homicídio culposo, tipificado no art. 302 do CTB, faz referência ao nomen juris do delito tipificado no art. 121, §3º do CP. Concluindo, assevera com sobriedade característica:

“Quando uma norma remete a outra, por intermédio da inserção do número do artigo ou do "nomen juris" do delito, impregna-se de todo o seu conteúdo, salvo disposição expressa em contrário. Na hipótese, o homicídio culposo cometido no trânsito contém todas as elementares, causas e circunstâncias do tipo comum, com exceção do disposto em contrário ou de forma diversa pela lei especial (como nas causas especiais de aumento de pena). 

E não poderia ser de outra maneira, sob pena de criar-se uma situação de flagrante inconstitucionalidade, ferindo o princípio da igualdade. Com efeito. Interpretação diferente conduz à conclusão de que a morte culposa de ente querido causada na direção de veículo automotor não admite o perdão judicial; nas relações comuns, fora do trânsito, permite. Considerando que 99% dos casos de perdão judicial são aplicados nos delitos de circulação, a proibição é absurda.”[3]

Irretocável a argumentação expendida por Damásio de Jesus, considerando, não só a juridicidade do caso, como, também, o contexto fático no qual se encontra inserido. A este argumento somo o seguinte.

Neste mesmo sentido é o entendimento de Ariosvaldo de Campos Pires e Sheila Selim:
“...as hipóteses de perdão judicial previstas para o homicídio culposo e a lesão corporal culposa, no Código Penal, devem ser aplicadas aos arts. 302 e 303 do Código de Trânsito, seja porque o art. 291 envia o intérprete à aplicação das normas gerais do Código Penal, seja por força das razões do veto, antes expostas, que se referem expressamente àquelas hipóteses”[4]

Regressando à análise do art. 291 do CTB, a regra é clara ao afirmar que “Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal”. Em que pese o perdão judicial no caso de homicídio culposo estar presente na Parte Especial do Código Penal e, portanto, não estar abrangido, em tese, pela disposição acima, ofereço diferente interpretação a tal preceito.

O art. 107, IX, do Código Penal, presente na Parte Geral  trata sobre o perdão judicial, nos seguintes termos:

“Art. 107 - Extingue-se a punibilidade: (...)
IX - pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei.”

Assim, respeitando entendimento contrário, sustento que a regra do art. 107, IX, em combinação com a do §5º da Lei 121 é aplicável ao caso do CTB, muito embora estejamos utilizando conteúdo dispositivo da Parte Especial. A regra contida na Parte Geral do CP é apenas complementada por preceito da Parte Especial. Assim, ao meu ver, a premissa maior, ou seja, a regra maior continua presente na Parte Geral do CP, devendo ser interpretada não individualmente, mas de acordo com o seu texto, ou seja, englobando-se a seu conceito os “casos previstos em lei” dos quais ela trata.

Melhor explicando, o legislador, ao diferenciar o homicídio culposo do art. 121 §3ª daquele elencado na legislação de trânsito, só diferenciou o desvalor da ação, e não o do resultado, mantendo o mesmo tipo penal. A ênfase dada ao crime de homicídio pelo legislador deveu-se a fatores externos, relacionados ao contexto social hoje vivido, no qual o número de vítimas fatais de acidentes de trânsito no qual há culpa de uma das partes cresce exponencialmente. Assim, em que pese ter concedido maior gravosidade ao referido delito, não o dissociou por completo do tipificado no Código Penal, sendo, portanto, aplicável a este o instituto do perdão judicial, disciplinado neste último.

Estas são as razões pelas quais considero plenamente aplicáveis ao CTB as normas da Parte Especial do CP, uma vez que estas fazem parte de uma regra maior, presente na Parte Geral da aludida legislação.

Em termos jurisprudenciais, o perdão judicial em hipótese de homicídio culposo derivado de condução de veículo automotor já sequer é discutido, sendo majoritariamente aplicado, cumprido os demais requisitos. Nesta trilha, acórdão do TJRS:

“Ao meu ver, é de ser concedido ao acusado o perdão judicial, já que preenchidos os requisitos legais.
Isso porque as vítimas ADÃO e MARIA eram, respectivamente, o pai e uma vizinha de relação muito próxima com o réu, sendo evidente que o acusado já restou punido pelo próprio fato. Seu sofrimento é evidente, decorre da própria relação de afeto que possuía com as vítimas.
As testemunhas confirmaram que o réu possuía uma boa relação com seu pai, e que inclusive trabalhavam juntos. Da mesma forma com a vítima Maria, já que conviviam de forma bastante próxima, tanto é que no dia do fato todos estavam voltando juntos de um evento religioso, tendo estado juntos desde a manhã daquele dia. Não há nos autos qualquer elemento que contrarie a hipótese de que o acusado sofreu insuportável dor moral em decorrência do fato, já que as vítimas eram pessoas queridas.
Segundo Fernando Capez, o perdão judicial é aplicável à modalidade culposa de homicídio, nas hipóteses “em que as consequências da infração atingiram o agente de forma tão grave que acaba por tornar-se desnecessária a aplicação da pena”[5].
Tal definição amolda-se com perfeição ao caso dos autos, acrescentando-se, ainda, que o acusado inclusive foi submetido a tratamento psicológico após o acidente em razão do intenso abalo que sofreu em decorrência do acidente.
Diante do exposto, estou dando provimento ao apelo do Ministério Público para condenar o acusado em segundo grau, como incurso, duas vezes, nas sanções do artigo 302, § único, inciso I, da Lei n.º 9.503/97, e, de ofício, em extinguir sua punibilidade com fulcro no art. 107, inciso IX, do Código Penal, em razão do perdão judicial previsto no §5º do art. 121 do Código Penal.”[6]

Também é a orientação de nossa Corte Estadual a sedimentada na ementa abaixo colacionada:

“APELAÇÃO-CRIME. DELITO DE TRÂNSITO. HOMICÍDIO CULPOSO. IMPRUDÊNCIA E IMPERÍCIA DA AGENTE, POR ESTAR EM ALTA VELOCIDADE, NÃO CONSEGUINDO OPERAR A MANOBRA DE FRENAGEM NECESSÁRIA PARA EVITAR O ACIDENTE. PERDÃO JUDICIAL. TRATANDO-SE DE EVENTO AUTOMOBILÍSTICO, É DE SE CONCEDER OPERDÃO JUDICIAL AO AGENTE QUE, EMBORA AGINDO CULPOSAMENTE, SOFRE INSUPORTÁVEL DOR MORAL, EM CONSEQÜÊNCIA DE HOMICÍDIO DE PESSOA DE RELAÇÃO ÍNTIMA. INTELIGÊNCIA DO PARÁGRAFO 5º DO ART. 121 DO CÓDIGO PENAL, QUE É APLICÁVEL AO HOMICÍDIO CULPOSO PREVISTO NO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. Apelo parcialmente provido. (Apelação Crime Nº 70027611839, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado em 15/04/2009)”

Em síntese, coadunando todo o estudo realizado brevemente nestas páginas, conclui-se que o perdão judicial possui validade jurídica para ser aplicado nos casos de homicídio culposo no trânsito, como bem vem sendo feito nos tribunais pátrios.



[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Especial, Volume II. 2006 p. 143.
[2] JESUS, Damásio E. de.  Crimes de Trânsito, Anotações à Parte Criminal do Código de Trânsito, 2000, p. 49.
[3] Idem
[4] PIRES, Ariosvaldo de Campos; SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de Trânsito, p. 186. Apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Especial, Volume II. 2006 p.205.
[5] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa a dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 121 a 212). 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
[6] (Apelação Crime Nº 70031580640, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcel Esquivel Hoppe, Julgado em 09/09/2009)


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