quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Artigo - Da interpretação do STF dada ao crime continuado



Pedro Ribeiro Agustoni Feilke – 30/08/2010

Da interpretação do STF do crime continuado e a controvérsia quanto à unidade de sujeito passivo: distinção entre continuidade delitiva e habitualidade delitiva em consideração da Súmula 605 do Supremo









1.       Introdução
O presente trabalho, com o cunho pretensamente histórico expositivo, trata sobre a evolução da interpretação dada pelo STF ao crime continuado, reformando o posicionamento antes vigente que ficou consignado na Súmula 605 da referida corte. Introdutoriamente, faz-se mister colacionar o texto do Código Penal que hoje vige no tocante ao crime continuado, conforme a seguir, in verbis:
“Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.”
A intelecção disposta no art. 71 do CP foi trazida ao ordenamento pátrio pela reforma do Código Penal, ocorrida em 1984, especificamente pela redação da Lei nº 7.209, de 11.7.1984, anterior, portanto à Constituição de 1988. Entretanto, anteriormente à referida renovação do Código Penal, o Supremo Tribunal Federal aprovou, em 17/10/1984, a Súmula 605, que assim ficou expressa:
“Não se admite continuidade delitiva nos crimes contra a vida”
Em que pese a publicação ter se dado em data posterior à vigência do “novo” Código Penal, deve se ter em mente que a publicação da Súmula, devido à morosidade do Judiciário, teve como base a antiga redação que o Decreto-Lei 2.848/40 dava ao crime continuado, conforme observamos do então vigente art. 51, abaixo transcrito do original:
“Art. 51. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.
(...)
§ 2° Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, impõe-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais graves, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.”
2.       Esboços iniciais do entendimento do STF que levou à publicação da Súmula 605
Corroborando a publicação de tal Súmula estavam julgados de períodos bem anteriores, entre os quais os RE: 86823[1], 91413[2], 90588[3], 91563[4] e 92375[5], todos pretéritos a referida inovação legislativa, publicados entre 1979 e 1980. Analisando os referidos Recursos levados à análise do Supremo, interessante ao estudo ora proposto trazer os votos dos então Ministros do STF. O Ministro Xavier de Albuquerque, no RE 86823 tratou sobre a matéria em pauta, comparando o posicionamento do Supremo em relação à configuração de delitos continuados no caso de roubo (conforme mais adiante estudaremos mais detidamente) com a hipótese de crimes contra a vida, como vemos:
“É certo que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao reexaminar e debater longamente, no recente julgamento dos RECr’s 87.769 e 88.394, concluído a 11.10.78, o tema correlato da configuração de roubo continuado quando diferentes as vítimas das ações delituosas, orientou-se, pela manifestação da maioria de seus juízes, no sentido afirmativo. Mas tal colocação não aproveita, em princípio, às hipóteses de crimes contra a pessoa, nos quais se ofendem bens personalíssimos como a vida, a honra, a liberdade. Isso ficou expressamente ressalvado em, pelo menos, um dos votos majoritário, - o do eminente Ministro Décio Miranda – e, implicitamente, ao que me pareceu, em manifestações de outros colegas, como, por exemplo, o eminente Ministro Thompson Flores.
Haverá casos, muito excepcionais, nos quais será possível reconhecer-se a continuação, mesmo tratando-se de ofensa a bens personalíssimos (...)”
O mesmo posicionamento foi o adotado pelo eminente Ministro Djaci Falcão, relator no julgamento do RE 91413. Nesta mesma decisão, convém trazer o convicto voto do Ministro Cordeiro Guerra, ao acompanhar o entendimento do relator:
“Sr. Presidente, o voto de V. Exa. vem demonstrar o acerto do dissenso daqueles que não concordam com o reconhecimento da continuidade nos crimes de roubo. Assim, já que V. Exa. nega aos homicidas o que se dá aos ladrões, estou plenamente de acordo, porque não a dou nem a uns nem a outros”
Conforme vemos, o Ministro Cordeiro Guerra, adotou o posicionamento estampado na Súmula 605, demonstra uma carregada carga ideológica ao proferir seu voto, que, diga-se de passagem, muito embora ríspido, dentro da conformidade legal. O caso em análise no aludido acórdão era o de um duplo homicídio, na situação fática em que o réu, “armado de revólver, entrou em um bar (...)” e, “sem qualquer motivo plausível e inesperadamente, desfechou um tiro contra Givaldo Ramos de Oliveira e, logo depois, saiu ao encalço de Otávio Gonçalves Buges matando-o do mesmo modo” mediante se extrai do relatório ali realizado.
A discussão, em termos teóricos, era a respeito do enquadramento ou não no conceito de continuidade delitiva, analisados apenas os requisitos que se averiguam do texto do então vigente art. 51, §2º do Decreto-Lei 2.898/40. Utilizam-se os Magistrados de cuja decisão recorreu-se dos ensinamentos de Damásio de Jesus, que considera como três os requisitos para a caracterização da continuidade delitiva, quais sejam:
“a. pluralidade de condutas.
 b. pluralidade de crimes da mesma espécie.
 c. continuação, tendo em vista circunstâncias objetivas (tempo, lugar, maneira de execução e outras)”
Interessante aferir que o acórdão recorrido, oriundo da Corte paulista, julgou estar caracterizada a continuidade delitiva no caso em questão, uma vez que literalmente de acordo com os requisitos legais e doutrinariamente considerados. Entretanto, como vimos dos votos dos Ministros, o argumento utilizado pelos eminentes julgadores da Corte Suprema é externo à própria lei, a meu ver, configurando hipótese de interferência do Poder Judiciário na tarefa legislativa.
3. Do posicionamento do STF no RE 88394 e implicações teóricas daí advindas
Buscando melhor aprofundar a matéria em análise, imprescindível trazer à baila trechos do tão citado acórdão paradigmático do STF que tratou sobre a questão da continuidade delitiva em casos de roubo, o RE 88.394, publicado em 1978. No caso ali discutido, pleiteava o réu a unificação das penas pelos delitos de roubo por ele praticados, uma vez tratando-se de hipótese de crime continuado. A tese por ele veiculada foi acatada pelo Tribunal paulista, contrariando o posicionamento anterior do STF (consagrado, ilustrativamente no RE 82297[6] e no HC 56016[7]), segundo o qual era inadmissível a configuração de crime continuado quando o agente praticava roubos contra vítimas diferentes, ainda que estes tivessem sido cometidos em tempo próximo e em condições de lugar e maneira de execução idênticas, como é o caso, exempli gratia, do assalto a motoristas em um curto espaço de tempo.
Melhor revendo o entendimento antes esposado pela Suprema Corte, iniciou o julgamento o voto do relator Ministro Soares Muñoz que, apoiando-se no voto por ele proferido no RECr 88826, assim decidiu fundamentadamente:
“É por demais conhecida a polêmica jurisprudencial e doutrinária a respeito da estrutura do crime continuado.
O Código Penal pátrio, na autorizada opinião de Aníbal Bruno, com a qual concordo, adotou a teoria objetiva pura: “Não cogita o nosso Código da unidade de pluralidade de desígnio, ou de resolução, ou de dolo, em suma do momento subjetivo, no seu aspecto de inteligência de vontade. No sistema do nosso Direito, são pressupostos do crime continuado: mais de uma ação ou omissão, praticadas pelo mesmo Autor, constituindo dois ou mais crimes da mesma espécie, ocorrendo a realização destes em condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, que estabeleçam entre elas um vínculo de continuação” (in Direito Penal, tomo II, p. 880)”. Continua o ilustrado Ministro, sustentando-se na consagrada doutrina de Aníbal Bruno, argumentando que a identidade de sujeito passivo é de exigir-se, em princípio quando “se trata de bens personalíssimos, como a vida, a integridade corporal, a honra, a liberdade, negando-se a existência de crime continuado, por exemplo, no caso de dois ou mais homicídios, ou de lesões em pessoas diferentes.”
Analisando, à sequência, o contexto social imposto ao caso, verifica o Ministro que “não me impressiona a objeção de que o reconhecimento de crime continuado, ao invés do concurso material de roubos, importa em favorecer o delinqüente que evidencia maior periculosidade, através da reiteração no mesmo delito. Historicamente, a continuação proveio de propósito generoso (Roberto Lyra, in Coments. ao Cod. Penal, v. II, o. 385), fundado na menor periculosidade do agente que, diante da inação das forças repressivas do Estado, é encorajado à infração, de modo a evidenciar-se que as subseqüentes são continuação da primeira.”
Como se afere do posicionamento do Ministro há uma diferenciação entre aquele criminoso que, por meio do concurso material de roubos, faz disto seu meio de vida, isto é, o “criminoso profissional”, ou o que caracteriza uma “habitualidade delitiva” nas palavras doutrinárias; e aquele que, de outra banda, age devido à falta da repressão estatal, leia-se, aquele agente de menor periculosidade, que é um “criminoso ocasional” ou, doutrinariamente, configura uma “continuidade delitiva”, assemelhando-se este último, como o faz notar a idêntica terminologia adotada, à hipótese de continuidade delitiva expressa no art. 71 do CP atual (alterado pela Lei 7.209/84), correlato ao revogado art. 51, §2º do Decreto-Lei 2.848/40. O que sinteticamente exponho neste parágrafo pode ser mais bem compreendido, inclusive representando em suma o posicionamento do STF àquela altura, da leitura da continuação do voto do ex-Ministro Muñoz, que, didaticamente expõe:
Não confundo crime continuado com a conduta permanente do ladrão profissional. Exijo que entre as infrações exista conexidade e certa proximidade de tempo e de lugar, de maneira que as subseqüentes se apresentem como desdobramento da primeira.”
Também foi este o entendimento do Ministro Leitão de Abreu no RE 81.107 (RTJ 84/892 e seguintes), considerando, em tons filosóficos:
“Constitue (sic) o crime continuado, em suma, como geralmente se reconhece, instrumento de individualização da pena, instituído com o propósito de corrigir, sob o signo da benevolência ou benignidade, a aspereza ou o rigor da cominação penal, quando para isso concorra – argumenta a doutrina – a culpabilidade diminuída do agente. Fruta da evolução do direito, que, segundo famoso jurisconsulto, caminha, no tocante à pena, no sentido da sua constante abolição, o crime continuado se limita a abrandá-la”
Regressando às orientações doutrinárias, julgo cabível, ainda que sob o risco de polarizar demasiadamente o presente estudo,  continuar a transcrever o referido voto paradigmático do ex-Ministro do STF Soares Muñoz, quando este cita renomados especialistas na hermenêutica penal, especificamente o catedrático de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Manuel Pedro Pimentel, in verbis:
o problema da unidade do sujeito passivo. A doutrina alienígena se divide em três correntes, quanto ao problema do sujeito passivo nos crimes continuados. A mais liberal admite a pluralidade de sujeitos passivos, quaisquer que sejam os bens jurídicos ofendidos, inclusive os de natureza personalíssima. A mais restritiva sustenta que a identidade do sujeito passivo deve ser exigida sempre. Uma terceira posição, intermediária, aceita a pluralidade, salvo nos crimes que ofendam bens personalíssimos. (...)”
A seguir, juntam-se no referido voto orientações que a doutrina pátria e a estrangeira adotam em relação às três categorias estabelecidas pelo catedrático. Entretanto, tendo em conta que não é objetivo precípuo do presente trabalho fazer uma profunda análise doutrinária da situação, o que não deixaria de ser interessante dotado de tempo suficiente, passamos adiante. O que é de fundamental importância, sim, é a orientação adotada pelo STF, que, conforme vemos, coaduna-se, mormente, com o magistério de Aníbal Bruno, consubstanciado no voto do relator Ministro Soares Muñoz, admitindo a teoria objetiva pura na hipótese de crime continuado, excetuando-se à regra, as situações nas quais são afrontados bens jurídicos personalíssimos.
E tal posicionamento não se restringe ao esposado pelo ilustre ministro acima citado, como vemos do voto proferido pelo Desembargador Carlos Antonini, utilizado como argumento da decisão do Ministro Rodrigues Alckmin, a dizer:
“... o legislador pátrio não estabeleceu distinção entre os casos em que o sujeito passivo dos delitos é um só, das hipóteses em que são vários, contentando-se com os requisitos enumerados no art. 51, § 2º, do Código penal”[8]
Também era majoritário o entendimento da Corte Suprema acerca da exceção em relação aos crimes contra bens personalíssimos, como expõe o já citado ex-Ministro Décio Miranda no RE 88.394 em comento:
“Seja-me permitido dizer, porém, que não estendo a dispensa do requisito da unicidade do sujeito passivo nos crimes em que a lesão somente atinge os bens personalíssimos da vida, honra e liberdade da pessoa.
Aí, sim, se diversos os sujeitos passivos, ter-se-á de aplicar rigorosamente o critério objetivo.”
Quanto à questão da caracterização do delito continuado abstratamente, pertinente observar que o Tribunal de origem considerou existente a continuidade delitiva (o qual obteve sucesso em reduzir a pena de 26 anos e 10 meses de reclusão a apenas 9 anos e 2 meses), nos delitos de roubo, em que pese o intervalo de 1 mês e 7 dias entre o primeiro e o último, e a distância entre os municípios nos quais ocorreram os delitos ser de duas horas de carro. Disto, notamos a subjetividade presente no conceito do antigo art. 51, §2º do CP, que se manteve presente na nova redação dada no art. 71 do atual Código Penal.
Essa é uma das bases do voto divergente proferido pelo ex-Ministro Moreira Alves no acórdão que intitula este item, que não se limita a esta análise prática, fazendo, também, uma bela exposição argumentativa que contraria o posicionamento dominante do STF na ocasião. Senão, vejamos:
“Gostaria, apenas, de tecer ligeiras considerações a respeito dos dois novos argumentos, trazidos a debate pelo eminente Ministro Soares Muñoz. S, Exª. alega, em primeiro lugar, em favor da tese da continuação, em casos como o ora em debate, a circunstância de que, no concurso formal, há alusão a desígnio, ao passo que o mesmo não ocorre, quando se trata de crime continuado.
Ora, é justamente nessa circunstância que se baseia a corrente a que me filio, para sustentar que não existe crime continuado (...) quando há diversidade de vítimas, em crime que envolve violação à própria pessoa.”
Deixando de lado uma mais profunda análise das teorias germânica (teoria objetiva pura do crime continuado) e italiana (teoria subjetiva do crime continuado), segue o voto do ex-Ministro, trazendo didáticos exemplos que sustentam seu posicionamento:
“Ora, a teoria objetiva pura, em matéria de crime continuado, para solucionar as dificuldades decorrentes da teoria subjetiva para a determinação do que seria exatamente o desígnio criminoso unitário, estabeleceu critérios objetivos, de fácil aplicação, mas não pode afastar dificuldade séria, com a que ocorre quando: um indivíduo sai à rua, com o propósito genérico de assaltar e, numa mesma noite, comete vários assaltos ou assassina várias pessoas, em semelhantes circunstâncias de lugar, de tempo, e, de modos de execução. Em casos tais, os próprios autores subjetivistas reagem à aplicação da continuidade, asseverando que, aí, não há unicidade de desígnio criminoso, mas desígnio criminoso genérico, o que é incompatível com o crime mais complexo, pois, se os momentos em que ocorreram os assaltos ou as mortes são próximos (a sucessão pode ser de minutos ou de horas), se os lugares não distam muito entre si, e o modo de execução é o mesmo, como, objetivamente afirmar que aí não há crime continuado? Foi para impedir a configuração de hipóteses como estas que os objetivistas são mais apegados ao princípio de que, objetivamente, não há continuação quando os crimes violam bens personalíssimos, sendo as vítimas diversas.”
Segue o autêntico e lúcido ex-Ministro citando obra de Nelson Hungria:
“Essa construção doutrinária foi acolhida, no Brasil, por Nelson Hungria, autor não só do projeto do atual Código Penal, mas também de sua exposição de motivos, onde, aliás, se encontra um exemplo que estaria a demonstrar que o Código admitira o crime continuado contra bens personalíssimos, com vítimas diferentes: é o caso do atropelamento sucessivo de várias pessoas, que, na exposição de motivos, está como exemplo de crime continuado. Nelson Hungria, naquela ocasião, não atentou para a impropriedade do exemplo, tanto assim que, logo depois, quando fez conferências que foram reunidas no volume “Novas Questões Jurídico Penais”, sustenta energicamente que o crime continuado não ocorria, quando houvesse a violação a bem personalíssimo, sendo as últimas diversas, inclusive no caso de roubo. Dá ate um exemplo, em que considera que há concurso material, e que é o de alguém assaltar um ônibus, subtraindo bens das várias pessoas que nele se acham.
Como a doutrina objetiva chegou a esse resultado? Com o seguinte raciocínio: nos crimes contra a pessoa, em que há violação de bem personalíssimo, a lei penal se dirige à proteção de cada indivíduo, e não à proteção do bem genérico – vida – ou do bem genérico – preservação da integridade física ou moral. É com relação a cada vítima, ao seu bem personalíssimo (vida em concreto, honra em concreto) que se dá a proteção da lei penal, ao contrário do que ocorre com os crimes patrimoniais, em que o que se tutela é o patrimônio em geral, uma vez que os bens patrimoniais de deslocam, facilmente de proprietário a proprietário”
Continua o letrado julgador, inconformadamente, questionando uma situação prática hipotética, na qual um indivíduo assalte hoje uma padaria, daqui a seis ou sete dias uma pessoa no meio da rua, e, daqui a oito ou dez dias, assalte outra pessoa em local completamente diferente. Em tal caso, instaura-se a dúvida se os crimes segundo e terceiro seriam continuações do primeiro, indagando, de forma contundente o ex-Ministro:
“Como é possível interpretar-se o Código Penal, dizendo que, pelo simples fato da proximidade e da semelhança da execução, haja continuidade? A continuidade no tempo é critério relativo. Nos Tribunais de São Paulo, por exemplo, enquanto algumas Câmaras consideram que há continuidade se os crimes são praticados dentro de um mês, outras admitem o mesmo em dois, três e até seis meses. E porque não haverá continuidade se a sucessão de roubos se fizer por um ou vários anos? Nem se diga que, nesse último caso, há criminoso profissional, posta tanto é o indivíduo que praticou dez assaltos em dois ou três anos, como o que, em espaço de tempo reduzido, assaltou várias vezes, e não prosseguiu por ter sido preso.”
De fato, os argumentos trazidos pelo ex-Ministro fogem à habitual linguagem jurídico-teórica vista na Corte Superior e traz questionamentos de ordem prática um pouco mais cotidianos, que, nem por isso, perdem sua valorosa contribuição teórica ao ponto em discussão. Convém, dada à relevância e à originalidade do voto, conferir a este uma credibilidade de grande monta, sendo importante seguir a leitura do belo arrazoado do ex-Ministro. Segue, então, pondo em pauta a teleologia da positivação do delito continuado, conforme, in verbis, denota-se:
“Qual a finalidade do crime continuado? Ele surgiu para impedir a aplicação da pena de morte a indivíduo que furtasse três vezes. Mas qual é, atualmente, o fundamento para manter-se a figura do crime continuado? É a diminuição da culpabilidade. E como se pode demonstrar a diminuição da culpabilidade com elementos objetivos? (...) Por isso mesmo é que o Código Penal, depois de aludir, em seu artigo 51, § 2º, aos elementos objetivos, que não apenas tempo, lugar e modo de execução, acentua que é preciso que os crimes subseqüentes sejam havidos como continuação do primeiro”.
Destaca-se que o argumento do ex-Ministro continua válido, uma vez que a redação do novo art. 71 do CP não alterou a referida parte em que se exige, salvo interpretação divergente, que os crimes subseqüentes devem ser continuação do original. Feita breve pausa, seguimos com o voto aludido:
“A não ser assim se chega ao seguinte absurdo: o indivíduo que pratique dois assaltos, mesmo para atender a necessidade de fome, mas num intervalo maior de quatro ou cinco meses, comete crimes em concurso material, podendo, portanto, ser punido duas vezes; já o indivíduo que, pela sua maior audácia, pratique cinqüenta crimes em alguns poucos dias, sofrerá uma pena aumentada de um sexto a dois terços”.
Ainda, finalizando, considera de maneia crítica o julgador mais um ponto colocado pelo ex-Ministro Soares Muñoz:
“Com relação ao segundo argumento do eminente Ministro Soares Muñoz – o de que o Direito Penal moderno é contrário às penas de longa duração -, isso é verdadeiro com relação a cada crime, e não quando há multiplicidade de crimes, havendo para isso a regra da limitação de penas.
O que me parece que não é possível é pretender que o Judiciário deve fazer política penitenciária em casos dessa natureza, quase como que estimulando os assaltantes a assaltarem muito em pouco tempo, na mesma cidade ou em cidades próximas, e com o mesmo modo de execução aperfeiçoado pela reiteração do seu emprego.”
Acompanhando o voto divergente, de igual forma, foi a concepção do ex-Ministro Cordeiro Guerra, que, em seu voto, utilizou-se de uma argumentação em conformidade com o contexto social vivido, considerando, já então, a intranquilidade que a insegurança e a violência criminal expunham à população brasileira. Aduziu a necessidade de considerar a pena em seu caráter exemplificativo, estando a interpretação da continuidade do delito de roubo no caso em tela, em desconforme com tal princípio da pena.
Faz, a seguir, um apanhado da história do crime continuado e sua origem, expressando que “quando se reconhece o crime continuado de modo a ser um estímulo à criminalidade há um desvio de sua natureza; aí me parece que não deve ser estimulada essa tendência ou essa interpretação”. De outra banda, pondera que, em que pese o instituto do crime continuado, assim considerado como uma espécie de benefício ao agente criminoso de menor potencialidade, ter tido raízes históricas corretamente desenvolvidas, hodiernamente, há que se ter em vista a nova estrutura social em voga. Em suas palavras:
“A tendência que prevaleceu anteriormente atendeu a essas circunstâncias históricas, já superadas. Se nós liberalizarmos o reconhecimento da continuidade nos crimes de roubo, estaríamos concorrendo inequivocamente para o desenvolvimento da criminalidade. (...) Se assaltar todos os dias, ao fim de dois ou três meses será punido por um único crime, com aumento da 6ª parte, e se for bem sucedido e bem temível, no fim da vida será condenado por um único delito, com aumento da 6ª parte até metade da pena. Nessa hipótese ficaria abolida toda a disciplina do Código Penal Brasileiro, que é baseada na repressão da reincidência, e estaríamos estimulando a criminalidade porque estaríamos eliminando a repressão penal.”
Em respeito à profissionalidade, tece os seguintes comentários:
“...confunde-se continuidade com modus operandi. Quando o delinqüente é profissional, ele adota a sua especialidade. Os velhos policiais do Rio de Janeiro sabia, só de olhar para um cofre arrombado, identificavam quem era o profissional que tinha feito o “serviço”. Agora, estamos diante do caso de um profissional de quadrilhas de assaltantes em São Paulo. Ele é especialista em dirigir automóveis em assaltos a bancos e supermercados. Como ele é especialista, é procurado, dirige para várias quadrilhas, e com isso pretende que tem o direito a ser punido só por cinco anos. Se ele só fizesse um assalto, teria cinco anos; se daqui a um ano fizesse outro, teria dez. Mas como é profissional, faz um todo mês, então, em vez de ser punido cinco vezes, nós lhe damos um estímulo para que ele continue na sua profissão,  porque o que ele sofreu foi um acidente no trabalho.”
E segue, por mais algumas linhas o seu argumento, de forma veemente e apaixonada, analisando, novamente o surgimento da continuidade delitiva na Idade Média, para proteger o criminoso famélico, com a desvirtuação ocorrida nos tempos presentes. Vê-se, dos votos já colacionados a divergência instaurada no Supremo acerca do referido tema.
De um lado, Ministros que sustentam uma posição essencialmente doutrinária com uma sofisticação filosófica. De outro, via de regra, os argumentos são mais duros, em contato direto com a realidade vivida. Tal divisão mostrou-se presente em debate posto aos autos, quando do voto do Ministro Rodrigues Alckmin, que é bem ilustrativo. O citado julgador, dirigindo-se ao Ministro Moreira Alves assim disse, conforme transcrito nos autos, debate que colaciono na íntegra pela curiosa discussão estabelecida:
“O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – V. Exa. analisou a questão de fato e, com a devida vênia, distorcendo os fatos, porque confunde o crime continuado com o crime profissional e leva para o âmbito do crime continuado o crime profissional. E critica ...
 O SR. MINISTRO MOREIRA ALVES – Eu não confundo. Não há essa distinção no Código Penal Brasileiro.
O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – Crime profissional não é crime continuado. Há essa distinção.
O SR. MINISTRO MOREIRA ALVES – Onde? V. Exa. me mostre onde ela se encontra no Código Penal Brasileiro.
O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – Mas se V. Exa. está buscando doutrina para conceituar o crime continuado, há de achar na doutrina a distinção.
O SR. MINISTRO MOREIRA ALVES – Então não há no Código nada  a esse respeito. Tudo se situa no terreno doutrinário.
O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – E como V. Exa. pode achar contra a lei, então...
O SR. MINISTRO CORDEIRO GUERRA – Aliás, eu faço distinção entre crime continuado e atividade criminosa contínua.
O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – V. Exa. me permite continuar o voto?
Então há uma distinção fundamental entre o crime profissional, que pode não ser crime continuado e revelar larga periculosidade, e o crime continuado. Assim já há um enfoque inicial, que toma cores passionais sobre os riscos da interpretação do Supremo Tribunal Federal, sobre os riscos que corre a sociedade, como se conjuntamente uma tese de direito envolvesse essas complicações todas, que tornam um ilustre Ministro desta Casa tão preocupado com a sua própria segurança pessoal...
O SR. MINISTRO CORDEIRO GUERRA – Pela minha, pela sua e a de qualquer pessoa que tenha sido assaltada.
O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – A minha não. Eu ainda estou imune a qualquer assalto...
O SR. MINISTRO CORDEIRO GUERRA – Deus o preserve, porque o valor intimidativo da pena está desaparecendo...
O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – V. Exa. ainda acredita no valor intimidativo da pena?
O SR. MINISTRO CORDEIRO GUERRA – Acredito. Eu não coloco os meus dedos numa tomada elétrica.
O SR. MINISTRO MOREIRA ALVES – V. Exa. já reparou que os assaltos a Bancos diminuíram, quando se aumentaram as penas?
O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – E a pena de morte nos Estados Unidos acabou com a criminalidade? É tema impossível de discutir. Então, o primeiro aspecto é este. Não iremos discutir isto, ou não chegaremos ao termo do julgamento. É uma questão de estatística, e eu somente posso recomendar estatísticas sobre criminalidade americana. Então, as posições estão tomadas, e é inútil prosseguir. Apenas quero frisar isto: limito-me à tese. Admito que há possibilidade de crime continuado, quando se trata de crimes de roubo.
O SR. MINISTRO MOREIRA ALVES – Mas V. Exa. tem que julgar o caso concreto.
O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – A alegação de que a doutrina alemã afasta a possibilidade, a mim não me faz a menor mossa. A doutrina italiana, quando examinava o elemento subjetivo, fazia-o prendendo-se ao texto do Código Penal Italiano. Não podia afastar o texto da lei, o “medesino disegno criminoso”, para criar uma doutrina que a ele na se ajustasse.
 O SR. MINISTRO MOREIRA ALVES – Mas há autores italianos que admitem, mesmo em face do Código Penal Italiano, a tese que sustento.
O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – Então há autores italianos que sustentam a teoria objetiva.
O SR. MINISTRO MOREIRA ALVES – Não. Sustentam que, mesmo em face da teoria subjetiva, não se admite a continuação em crimes contra bens personalíssimos.
O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – Mas há autores italianos que admitem que o crime continuado se deve configurar através da doutrina objetiva, dando maior valor a dados objetivos que a esses elementos subjetivos
O SR. MINISTRO MOREIRA ALVES – Isso é outro problema. É discussão de ordem doutrinária, teórica.
O SR. MINISTRO RODRIGUES ALCKMIN – Veja V. Exa. que a doutrina discorda. Portanto não é a questão de prender-se a autor alemão ou à teoria alemã, que deve afastar do nosso Código a interpretação a ser dada. Dizer-se que, no tocante a crimes que atinjam a pessoas, não há possibilidade de continuação, parece-me jogo de palavras. O assalto atinge o patrimônio, o roubo atinge o patrimônio”
Em síntese, o resultado obtido no julgamento paradigmático do STF foi o da não caracterização do delito de continuidade no caso em tela. Entretanto, o que se decidiu de mais importante em tal oportunidade foi que a maioria dos Ministros, em que pese não considerarem que o caso concreto atendia aos pressupostos da continuidade delitiva, considerou possível a existência desta com multiplicidade de sujeitos passivos, o que, bem ou mal, inovou o ordenamento jurídico então vigente.
O contexto acima estabelecido foi o que deu origem à edição à Súmula 605 do STF, com o texto que já conhecemos, no qual restou assentado que “Não se admite continuidade delitiva nos crimes contra a vida”. Nada inova e não estranha a orientação da Suprema Corte ter tomado esta direção, pelo entendimento dos ministros acima colacionados.
Certo é que a discussão estabelecida nos acórdãos mencionados de 1979 e 1980, consubstanciou-se com a inadmissão de continuidade delitiva apenas em crimes de lesa à vida, ou seja, aqueles dispostos no Capítulo I do Título I da Parte Especial do Código Penal – Homicídio, Induzimento, Instigação ou auxílio a suicídio, Infanticídio e Aborto. Ficaram de fora do âmbito de abrangência do dispositivo legal o conjunto integral de crimes contra “bens jurídicos personalíssimos” para considerar apenas os crimes contra a vida como impossíveis de ocorrência de continuidade delitiva.
4.  Da inovação legislativa trazida pela Lei 7.209/84
Em 1984 , no dia 11 de Julho especificamente, foi publicada a Lei 7.209/84, a qual alterou o Decreto-Lei 2.848/40 – Código Penal -, inovando em muitos aspectos. No tangente ao estudo proposto nestas sucintas páginas, adveio o art. 71 e seu parágrafo único. O caput do artigo manteve a mesma redação do revogado artigo 51, § 2º do Decreto-Lei do Código Penal. Entretanto, foi adicionado o parágrafo único no artigo 71, com a seguinte redação:
“Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código”
Na exposição de motivos da nova parte geral do Código Penal, publicada em 29 de março de 1984 com texto de Ibrahim Abi-Ackel, ficou expresso, no item 58, que foi mantida “a definição atual de crime continuado”. No entanto, ressaltou que expressiva inovação foi introduzida no parágrafo do art. 71. No trecho que mais importa, e de maneira relevante, ao nosso estudo, o ponto 59 explicita o intuito legislativo inovador:
“59. O critério da teoria puramente objetiva não revelou na prática maiores inconvenientes, a despeito das objeções formuladas pelos partidários da teoria objetivo-subjetiva. O Projeto optou pelo critério que mais adequadamente se opõe ao crescimento da criminalidade profissional, organizada e violenta, cujas ações se repetem contra vítimas diferentes, em condições de tempo, lugar, modos de execução e circunstâncias outras, marcadas por evidente semelhança. Estender-lhe o conceito de crime continuado importa em beneficiá-la, pois o delinqüente profissional tornar-se-ia passível de tratamento penal menos grave que o dispensado a criminosos ocasionais. De resto, com a extinção, no Projeto, da medida de segurança para o imputável, urge reforçar o sistema destinando penas mais longas aos que estariam sujeitos à imposição de medida de segurança detentiva e que serão beneficiados pela abolição da medida. A Política Criminal atua, neste passo, em sentido inverso, a fim de evitar a libertação prematura de determinadas categorias de agentes, dotados de acentuada periculosidade.”
Como vemos, o texto acima colacionado tem o intuito de solucionar as dúvidas e controvérsias tão presentes no Recurso Extraordinário exaustivamente analisado no item anterior. No entanto, considero que a novidade legislativa não serviu ao propósito para o qual foi criada.
A dúvida quanto à caracterização de delito continuado permanece, assim como não foi alterada a importante carga subjetiva dos conceitos trazidos na hipótese penal ali narrada. De qualquer sorte, notamos que a discussão quanto ao diferenciamento entre o criminoso “habitual” e o “ocasional” permaneceu fortemente presente na exposição de motivos.
A preocupação do legislador em punir mais gravosamente o criminoso habitual, ou em outras palavras, o criminoso profissional, restou positivada no texto do parágrafo único do art. 71. Em que pese a orientação do referido parágrafo tenha vindo ao encontro dos anseios daqueles que consideram como injusta a continuidade delitiva contra sujeitos passivos diferentes, precipuamente em delitos contra a vida, ou, nos dizeres do STF, em delitos contra bens jurídicos personalíssimos, a configuração de concurso material, se suplantar a tese de continuidade delitiva (ainda que com a aplicação do parágrafo único) será, via de regra, mais gravosa ao criminoso.
Desta forma, a fim de estabelecer uma correta ponderação e observando o princípio da proporcionalidade na aplicação das penas, não deve a discussão limitar-se aos aspectos objetivos acima asseverados, mas deve, outrossim, considerar a própria caracterização do delito como continuado ou não.
Na esteira do acima exposto, faz-se importante trazer o HC 77786, o qual revogou (não oficialmente, frise-se) o enunciado da Súmula 605 do STF. O referido julgamento do Habeas Corpus restou assim ementado:
“COMPETÊNCIA - HABEAS CORPUS - ATO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Na dicção da ilustrada maioria (seis votos a favor e cinco contra), entendimento em relação ao qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas corpus impetrado contra ato de tribunal, tenha este, ou não, qualificação de superior. CONTINUIDADE DELITIVA - HOMICÍDIO. Com a reforma do Código Penal de 1984, ficou suplantada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal predominante até então, segundo a qual "não se admite continuidade delitiva nos crimes contra a vida" - Verbete nº 605 da Súmula. A regra normativa do § 2º do artigo 58 do Código Penal veio a ser aditada por referência expressa aos crimes dolosos, alterando-se a numeração do artigo e inserindo-se parágrafo - artigo 71 e parágrafo único do citado Código. CONTINUIDADE DELITIVA - PARÂMETROS. Ante os pressupostos objetivos do artigo 71 do Código Penal - prática de dois ou mais crimes da mesma espécie, condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras circunstâncias próximas - impõe-se a unificação das penas mediante o instituto da continuidade delitiva. Repercussão do crime no meio social - de que é exemplo o caso da denominada "Chacina de Vigário Geral" - não compõe o arcabouço normativo regedor da matéria, muito menos a ponto de obstaculizar a aplicação do preceito pertinente. PROVIMENTO JUDICIAL CONDENATÓRIO - CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA - DOSIMETRIA DA PENA - VÍCIO. O vício de procedimento concernente à fixação da pena - inobservância da continuidade delitiva - alcança apenas o ato que o encerra , do Presidente do Tribunal de Júri, não atingido o veredicto dos jurados, por se tratar de matéria estranha à quesitação e respostas que lhe deram origem.”
O referido acórdão apenas fez a interpretação lógica do parágrafo único do art. 71 do CP que acabou considerando os crimes dolosos contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa como passíveis de enquadramento como delitos continuados.
5. Do contexto atual do STF: Continuidade delitiva e a distinção entre criminosos habituais e ocasionais
Conforme vimos nos itens 2 e 3, o posicionamento do STF adotado quando da vigência do Código Penal em sua redação original, era no sentido de que a continuidade delitiva não poderia ser identificada em crimes contra à vida, conforme ficou consubstanciado na Súmula 605. Entretanto, com o advento da reforma da Parte Geral do Código Penal, renovou-se tal orientação, passando-se a aceitar a caracterização de delito continuado em todos os crimes do Código Penal, independentemente da unicidade do sujeito passivo.
No entanto, buscando adequar o texto legal ao contexto social, a Corte Suprema passou há adotar, já há muito tempo, entendimento que considera uma diferenciação entre o criminoso habitual e o ocasional. Muito tempo se passou desde a inserção do crime continuado no ordenamento jurídico pátrio. Anteriormente com uma interpretação absurdamente restritiva[9], a doutrina e a jurisprudência, como já vimos em boa parte, foi evoluindo para melhor corresponder aos anseios jurídicos e sociais.
Em que pese a nova disposição do Código Penal bem como o advento da Constituição Federal de 1988, a presente orientação do STF, no tocante à interpretação de delito continuado, repisa um muito antigo entendimento da Suprema Corte, repaginado, sim, mas essencialmente o mesmo presente nas decisões da referida Corte há décadas. Já era esta a ideia do STF em 1981, como vemos da ementa a seguir:
“CRIME CONTINUADO. NÃO BASTA PARA O RECONHECIMENTO DO CRIME CONTINUADO A PRESENCA DE TODOS OS REQUISITOS LEGAIS, SE LHES FALTA A VERIFICAÇÃO DE SER UM CRIME A CONTINUAÇÃO NECESSARIA DE OUTRO. E PRECISO QUE O CRIME SUBSEQUENTE SEJA TIDO COMO CONTINUAÇÃO DO PRIMEIRO. A REITERAÇÃO DE CRIMES PELOS DELINQUENTES HABITUAIS NÃO CONSTITUI CONTINUAÇÃO DELITIVA, MAS ATESTADO DE TEMIBILIDADE DO DELINQUENTE. RE NÃO CONHECIDO.”[10]
Também já vimos, segundo o entendimento dos ex-Ministros citados nos itens 2 e 3, que a distinção feita entre criminosos habituais e ocasionais já faz parte das decisões do STF desde os anos 70. Nos anos 90, voltou à tona a teoria em comento, conforme predizem as ementas a seguir:
"HABEAS CORPUS" - CRIME DE ROUBO - CONDENAÇÕES PENAIS DIVERSAS POR PRÁTICAS SUCESSIVAS - PRETENDIDO RECONHECIMENTO DO NEXO DE CONTINUIDADE DELITIVA - INOCORRÊNCIA - MERA REITERAÇÃO DE CRIMES - ORDEM DENEGADA. - Prática reiterada e habitual do crime de roubo por delinquentes contumazes, reunidos em quadrilha, ou não, que dela fazem, mediante comportamento individual ou coletivo, uma atividade profissional ordinária, descaracteriza a noção de continuidade delitiva. O assaltante que assim procede não pode fazer jus ao benefício derivado do reconhecimento da ficção jurídica do crime continuado. A mera reiteração no crime que se não confunde e nem se reduz, por si só, a noção de delito continuado - traduz eloquente atestação do elevado grau de temibilidade social daquele que a pratica. - O reconhecimento do crime continuado - que faz afastar a incidência da regra do cúmulo material das penas - reveste-se de caráter excepcional, devendo, para os efeitos jurídico-penais dele resultantes, ficar plenamente configurado em todos os elementos e pressupostos que lhe compõem o perfil legal e a noção conceitual.[11]
"Habeas corpus". Unificação de penas. Continuidade delitiva não reconhecida. Reiteração criminosa. Delitos autônomos. Delinquência habitual. Onze crimes perpetrados, pelo paciente, no período de setembro a março. Código Penal, art. 71. Crimes praticados em bairros e cidades diferentes, em dias diversos, sem elo entre eles. "Habeas Corpus indeferido.”[12]
“HABEAS-CORPUS. CRIME CONTINUADO. Condenações por crimes de roubo. Unificações das penas. Continuidade delitiva. Caracterização não configurada: quer pela habitualidade delituosa, quer pelos elementos objetivos dos crimes perpetrados. A reiteração criminosa, por aquele que faz do crime de roubo um habitual meio de vida, descaracteriza a noção legal do chamado crime continuado. Ordem conhecida, mas indeferida.”[13]
“HABEAS CORPUS - CRIME DE ROUBO - PRÁTICAS SUCESSIVAS - CONDENAÇÕES PENAIS DIVERSAS - PRETENDIDO RECONHECIMENTO DO NEXO DE CONTINUIDADE DELITIVA - INOCORRÊNCIA - MERA REITERAÇÃO DE CRIMES - ORDEM DENEGADA. - A prática reiterada e habitual do crime de roubo, por delinqüentes contumazes - que fazem, de seu comportamento individual ou coletivo (reunidos, ou não, em quadrilha), uma atividade profissional ordinária - descaracteriza a noção de continuidade delitiva. O assaltante, que assim procede, não pode fazer jus ao benefício derivado do reconhecimento da ficção jurídica do crime continuado. A mera reiteração no crime - que não se confunde, nem se reduz, por si só, à noção de delito continuado - traduz eloqüente atestação do elevado grau de temibilidade social daquele que incide nesse gravíssimo comportamento delituoso. - O reconhecimento do crime continuado - que afasta a incidência da regra do cúmulo material das penas - reveste-se de caráter excepcional, devendo, para os efeitos jurídico-penais dele resultantes, ficar plenamente configurado em todos os elementos e pressupostos que lhe compõem o perfil legal e a noção conceitual. Precedentes.”[14]
E assim firmou-se o posicionamento exemplificado nos acórdãos acima trazidos, tendo o STF assumido tal distinção entre habitualidade delitiva e ocasionalidade delitiva como se lei fosse. Na mais recente decisão do STF no HC 101049, datada de 04/05/2010, foi reafirmada tal orientação. Assim constou no voto da Ministra Ellen Gracie:
“...a reiteração criminosa indicadora de delinquência habitual ou profissional é suficiente para descaracterizar o crime continuado.
A descaracterização da continuidade delitiva pela habitualidade criminosa justifica-se pela necessidade de se evitar a premiação de criminosos contumazes, que acabam tornando-se profissionais do crime, inclusive com especialização em determinadas modalidades delituosas.
A continuidade delitiva, por implicar verdadeiro benefício àqueles delinquentes que, nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar de execução, praticam crimes da mesma espécie, deve ser aplicada somente aos acusados que realmente se mostrarem dignos de receber a benesse.”
De igual importância é o julgamento proferido em 2008 no RHC 93144, cuja ementa foi a seguinte:
“Recurso ordinário em habeas corpus. Delitos de roubo. Unificação das penas sob a alegação de continuidade delitiva. Não-ocorrência das condições objetivas e subjetivas. Impossibilidade de revolvimento do conjunto probatório para esse fim. Recurso desprovido. Precedentes. 1. Para configurar o crime continuado, na linha adotada pelo Direito Penal brasileiro, é imperioso que o agente: a) pratique mais de uma ação ou omissão; b) que as referidas ações ou omissões sejam previstas como crime; c) que os crimes sejam da mesma espécie; d) que as condições do crime (tempo, lugar, modo de execução e outras similares) indiquem que as ações ou omissões subseqüentes efetivamente constituem o prosseguimento da primeira. 2. É assente na doutrina e na jurisprudência que não basta que haja similitude entre as condições objetivas (tempo, lugar, modo de execução e outras similares). É necessário que entre essas condições haja uma ligação, um liame, de tal modo a evidenciar-se, de plano, terem sido os crimes subseqüentes continuação do primeiro. 3. O entendimento desta Corte é no sentido de que a reiteração criminosa indicadora de delinqüência habitual ou profissional é suficiente para descaracterizar o crime continuado. 4. Incensurável o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, ora questionado, pois não se constata, de plano, ocorrerem as circunstâncias configuradoras da continuidade delitiva, não sendo possível o revolvimento do conjunto probatório para esse fim. 5. Recurso desprovido.”
Assim, vemos que o STF estabeleceu uma clara diferenciação entre os criminosos habituais e os ocasionais, introduzindo tal ideário ao ordenamento jurídico pátrio.


[1] Publicado no DJ de 19/4/1979 RTJ 89/981
[2] Publicado no DJ de 15/10/1979 RTJ 95/424
[3] Publicado no DJ de 7/12/1979 RTJ 92/1352
[4] Publicado no DJ de 29/2/1980 RTJ 93/1333
[5] Publicado no DJ de 16/5/1980 RTJ 94/929
[6] Publicado no DJ de 3.4.76, pág. 2.227
[7] Publicado no DJ de 9.4.76, pág. 2.385
[8] RTJ, 84, cit., pág. 304
[9] Nelson Hungria, em seus estudos datados de 1945 assim considerou “a relativa continuidade de tempo será irrelevante, se não se apresenta conjugada a outros indícios de encadeamento objetivo das ações; assim, o ladrão que, na mesma noite, assalta casas distintas, responde por concurso material de crimes”
[10]RE 95242/BA - BAHIA RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a):  Min. CORDEIRO GUERRA
Julgamento:  04/12/1981 Órgão Julgador:  SEGUNDA TURMA
[11]HC 68124 / DF - DISTRITO FEDERAL  HABEAS CORPUS Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE Relator(a) p/ Acórdão:  Min. CELSO DE MELLO
Julgamento:  18/12/1990 Órgão Julgador:  PRIMEIRA TURMA
[12]HC 69059/SP - SÃO PAULO HABEAS CORPUS Relator(a):  Min. NÉRI DA SILVEIRA
Julgamento:  25/02/1992 Órgão Julgador:  SEGUNDA TURMA
[13]HC 70731/SP - SÃO PAULO HABEAS CORPUS Relator(a):  Min. PAULO BROSSARD
Julgamento: 07/06/1994 Órgão Julgador:  Segunda Turma
[14] HC 70794 / SP - SÃO PAULO HABEAS CORPUS Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO
Julgamento:  14/06/1994 Órgão Julgador:  Primeira Turma

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