terça-feira, 29 de março de 2011

Programação peça "Filha da Anistia"

Complementando post anterior...


"Segue abaixo a programação e agenda da peça "Filha da Anistia" em Porto Alegre..

Depois de cada apresentação, haverá sempre uma mesa de debate, da qual participarão convidados locais indicados pelos organizadores em cada cidade, e um representante do Núcleo de Preservação da Memória Política (de São Paulo-SP), parceiro da Caros Amigos Cia de Teatro: em Porto Alegre > Ivan Seixas. 

A entrada é franca - os telefones das bilheterias dos teatros estão colocados em nossa agenda abaixo, simplesmente para caso de necessidade de melhores ou mais detalhadas informações.

"Filha da Anistia" teve sua estréia e primeira temporada no ano passado (2010) em São Paulo, e se insere na tradição do Teatro Político.
Seu objeto de trabalho e reflexão é uma tragédia familiar desencadeada pelas torturas a que foram submetidos os irmãos Jorge e Iara – militantes de uma organização clandestina da luta armada dos anos 1960-1970, e filhos de um militar da "base aliada" da ditadura. No entanto, diferentemente da maioria dos trabalhos produzidos no Brasil sobre o assunto na área das representações cênicas (seja teatro, cinema ou novela), o texto e sua encenação não incorrem no fascínio frente às torturas, sua estetização e, menos ainda, em sua manipulação barata no sentido de aterrorizar a platéia, de produzir os reconciliadores efeitos catárticos, ou o prazer da liberação de altas doses de adrenalina, seguido de prostração.
A tortura está presente em todos os momentos da peça. No entanto, ela não é mostrada em cena, pelo menos em sua representação realista. Ela está presente pelos seus efeitos desagregadores (e destruidores) nas vidas e nos destinos dos personagens, de modo persistente, permanente, mesmo depois de 40 anos.

Juntamente com a programação que segue abaixo, no corpo desta mensagem, enviamos em arquivo como parte da divulgação do trabalho, um dos textos que constam do programa da peça.

Convidamos a todos para as apresentações, e pedimos que divulguem amplamente o nosso material.

 

Putabraço,
Alipio Freire 



AGENDA DA CARAVANA DA PEÇA
FILHA DA ANISTIA
Porto Alegre
Caros Amigos Cia. de Teatro
  PORTO ALEGRE/RS

Datas e horários
Dia 07 de abril, quarta feira, 20h.
Dia 08 de abril, quinta feira, 16h e 20h.
Dia 09 de abril, sexta feira, 16h e 20h.

Local
Teatro de Arena. (110 lugares)
Endereço: Avenida Borges de Medeiros, 835 – Centro -  Porto Alegre/RS.
Informações bilheteria: (0XX51) 3226-0242"

Abaixo, texto do autor da peça:

Os muitos porquês de
“Filha da Anistia”

ALIPIO FREIRE

Jornalista, Escritor e Artista Plástico

DA TRAGÉDIA


Nós sobrevivemos
ao pau-de-arara

mas o pau-de-arara
também sobreviveu.
(AF)

  
Em 31 de março de 1964, a disputa entre dois projetos políticos para o Brasil teve seu desfecho com um golpe de Estado que implantou no País uma longa ditadura.

O primeiro desses projetos reunia um conjunto de forças que se aglutinavam em torno das chamadas Reformas de Base, que defendiam um desenvolvimento nacional independente, fundado na distribuição de renda.

Esse programa foi gestado e defendido a partir das lutas e reivindicações dos trabalhadores urbanos e rurais, do povo (povo = os explorados e oprimidos), de setores do capital nacional e de outras forças progressistas de então. Dirigido pelo partido do presidente João Goulart – o Jango, o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, de viés nacional-reformista, esse programa reunia ainda agrupamentos socialistas (dos quais o mais importante era o Partido Comunista Brasileiro – PCB) e setores de cristãos progressistas.

O segundo projeto reunia interesses dos conservadores: o grande capital nacional e internacional; o latifúndio; a alta hierarquia da Igreja Católica – Estado do Vaticano; setores das “classes médias”; a direita ideológica; altos comandos das forças armadas, e o Governo e empresas dos EUA.
Seu programa de desenvolvimento se fundava na concentração de renda e subordinava-se ao grande capital internacional e à política (e geopolítica) da Casa Branca.

A premissa desse segundo programa era a derrubada do Governo Jango, o que implicava necessariamente o uso da violência para a conquista do poder, e enquanto instrumento permanente de Governo. De acordo com pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisas Ibope em março de 1964 (vésperas do golpe), a grande maioria dos brasileiros apoiava o Governo Jango e seu programa de reformas, e
votaria pela sua continuação na Presidência da República, nas eleições que deveriam acontecer no ano seguinte (1965). Reverter este quadro, portanto, exigia o golpe e um regime fundado na violência.

Ou seja, a violência não era e não foi um apêndice, uma exceção que ocorria nos “porões” sem o controle dos dirigentes civis e militares do regime. Afirmar o contrário é tão tolo quanto dizer que os Orléans e Bragança e sua corte não sabiam o que acontecia nas senzalas e pelourinhos, ou que os capitães-do-mato fugiam ao controle dos seus senhores.

A violência era parte inalienável do programa dos golpistas.
A violência era programa.

Assim, o terror de Estado se implantou desde o primeiro dia da ditadura. Já no 1º de abril, começaram as perseguições, prisões, cassações e assassinatos dos seus opositores.


Solidariedade e Anistia

A solidariedade aos perseguidos e punidos – que, mais adiante, com o fortalecimento da oposição dará origem às campanhas pela Anistia – tem também início desde o dia seguinte ao golpe, como parte indissociável dessa resistência.

Do mesmo modo que as demais ações de resistência, a solidariedade se ramificava por todas as atividades do mundo do trabalho: fosse entre os chamados “trabalhadores intelectuais”, os trabalhadores do setor dos serviços, os operários, ou outros assalariados e profissionais liberais.

Também no exterior, desde o primeiro momento, surgiram manifestações de solidariedade, animadas, sobretudo, por movimentos e partidos socialistas de diversos matizes (de social-democratas a comunistas); cristãos progressistas; sindicatos de trabalhadores; entidades de defesa dos direitos humanos; outras forças progressistas, e exilados brasileiros.

Por volta de 1973-1974, muitos dos grupos de solidariedade aos perseguidos políticos e punidos pela ditadura passam a levantar a bandeira da Anistia. A primeira dessas iniciativas a ganhar corpo e expressão nacional, foi o Movimento Feminino de Anistia, fundado por Terezinha Zerbini em 1973.

Em maio de 1978, no Encontro dos Movimentos pela Anistia, em Salvador (BA), surgiram os Comitês Brasileiros pela Anistia – CBAs, com o objetivo de unificar as atividades e lutas nessa área.

De 2 a 5 de novembro do mesmo ano, é aberto em São Paulo, no Teatro da Universidade Católica (Tuca), o 1º Congresso Nacional pela Anistia.

Ao longo dos anos de 1978 e 1979, em plena ditadura, os Comitês Brasileiros pela Anistia – CBAs, que reuniam as principais forças que lutavam pela redemocratização, elaboraram um projeto de anistia política Ampla, Geral e Irrestrita.

No dia 28 de agosto de 1979, o último general-presidente, João Baptista Figueiredo, assinou uma Lei de Anistia aprovada no dia 22 por pequena maioria no Congresso Nacional, que contrariava em muitos pontos a proposta dos CBAs.

Apesar disto, essa Lei representou uma conquista parcial daquelas forças. Porém, como vários aspectos da redemocratização proposta pelas forças da resistência popular, não foi uma conquista completa.

Como conseqüência dessa anistia incompleta (além de outras propostas da resistência não efetivadas), a democracia pela qual se lutava, permanece incompleta. Ou seja, permanece inconcluso o processo de transição do País para a democracia, como inconclusa permanece a Anistia.

Questão central para que a Anistia se complete e para que se aprofunde a democracia, é o esclarecimento dos crimes de seqüestro, de utilização de cárceres clandestinos, tortura, assassinato e ocultação de cadáveres de opositores, levados a cabo por agentes do Estado e grupos paramilitares, a identificação dos seus responsáveis (diretos e indiretos), seu indiciamento legal, julgamento e punição nos termos da lei.

Quando elencamos acima os crimes praticados por agentes do Estado e/ou forças paramilitares àqueles associadas, convém explicitar: os opositores não eram jamais detidos ou presos por ordem judicial, o que configura, portanto, um seqüestro. Em seguida, eram levados para dependências de instituições do Estado (quartéis, delegacias, etc.), ou para casas, sítios e outros logradouros mantidos com verbas públicas, ou provenientes de doações ad hoc de grandes empresários. Destes, o mais conhecido e famoso (ainda que nunca o único), o senhor Henning Albert Boilesen, justiçado por um comando formado por militantes das organizações (clandestinas) Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) e Ação Libertadora Nacional (ALN), em São Paulo-SP, no dia 15 de abril de 1971. Naqueles locais, permaneciam encarcerados por tempo indeterminado, escondidos das suas famílias, advogados e amigos, e sob constantes interrogatórios – ou seja, em cárceres clandestinos. Ali, os interrogatórios eram sempre feitos sob torturas, durante as quais, por volta de cinco centenas de homens e mulheres foram assassinados. Destes, cerca de uma centena e meia foram dados como desaparecidos: tiveram seus cadáveres ocultados.

De acordo com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (dados do início de 2010), durante a ditadura do pós-64, 30 mil cidadãos e cidadãs foram torturados, e 308 mil investigados. Lembramos ainda que centenas de milhares de opositores para continuarem no País, tiveram de viver na mais absoluta clandestinidade, e outros acabaram por se exilar, para não cair nas malhas da repressão.

Ou seja, o terror de Estado não teve limites para impor o projeto do grande capital e da geopolítica de Washington: a concentração da riqueza e da propriedade; o aprofundamento das desigualdades; o arrocho salarial; a perda de direitos dos trabalhadores; o êxodo rural; o aumento do número de favelas e submoradias; o crescimento vertiginoso da dívida externa, e o progressivo e acelerado aprofundamento da subordinação do País às ordens da Casa Branca; a extinção de todos os direitos públicos; a ampliação de todos os crimes e misérias (materiais e morais) que deixaram de herança para as gerações subseqüentes.

Essas perseguições, violências e crimes da ditadura foram, portanto, apenas meios para concretizar o programa de desenvolvimento com concentração de renda, dos golpistas do 31 de março de 1964. Perseguições, violências e crimes foram desencadeados contra (indistintamente) todos aqueles que contestassem o regime em qualquer dos seus aspectos – o menor que fosse. E é imprescindível entender essa questão, pois somente assim passaremos a entender e respeitar aqueles que foram alvos do terror de Estado como sujeitos políticos, e não como “vítimas inocentes”.

A “vítimas inocentes”, talvez possa caber a piedade. A sujeitos políticos, ao contrário: cabe, antes de tudo e fundamentalmente, a solidariedade política; a legitimação dos seus objetivos, da sua luta. Toda piedade, aqui, torna-se um modo
de subestima-los, bem como aos seus projetos.

A piedade costuma diminuir, infantilizar seu objeto, seu alvo. Costuma diluir a condição de sujeito, daquele sobre o qual se derrama. Diluir – através da corrosão que leva a cabo o quase imperceptível verme da piedade – a condição de sujeitos cujas identidades podem ser claramente definidas pelos programas políticos que defendiam, e pelas posturas assumidas perante o mundo e as classes,. E isto, certamente, os que foram perseguidos dispensam.

Também frente a um Estado fundado no terror, não devemos discutir a legalidade dos gestos e dos caminhos escolhidos por seus opositores. E à sempre possível pergunta “eram gestos legítimos?” – uma única resposta pode ser dada: SIM.
Portanto, aos seus algozes, justiça.


A impunidade ontem e hoje


É a impunidade dos criminosos de ontem que estimula, naturaliza, banaliza e torna impunes os crimes, chacinas e massacres do presente, agora contra a população de baixa renda das periferias das cidades; contra os trabalhadores rurais e camponeses pobres; ou as torturas e assassinatos nas sombrias salas de “interrogatório” das delegacias e outros órgãos públicos do presente.

De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, entre 1999 e 2008 foram assassinadas 365 pessoas no campo. A quase totalidade desses crimes permanece impune.

Nas periferias da cidade de São Paulo e da Baixada Santista, em maio de 2006, Policiais Militares trucidaram cerca de 600 pessoas – a maioria dos quais jovens, negros, sem qualquer passagem anterior pela polícia, ou mandado de captura. Mesmo se fossem bandidos, o procedimento seria igualmente intolerável. São os Crimes de Maio – até hoje impunes.
Enquanto isto, o Judiciário permanece uma caixa-preta – intocável.

A impunidade do ontem é a farsa do hoje.
A impunidade do ontem é o cinismo do hoje.

O terror de Estado exercido hoje contra os mais pobres e a estigmatização, satanização e conseqüente criminalização de seus movimentos e organizações, não tem outro objetivo senão o mesmo explicitado durante a ditadura: garantir a “paz social”, a grande Pax Americana, para a realização do grande capital. E o capital funda todas as suas ações e moral, na realização e concentração do lucro. O lucro é o fim através do qual, a grande burguesia justifica para si, todos os mais sórdidos meios dos quais lança mão para garanti-lo. Justifica para si, e tenta universalizar enquanto valor material e moral para todas as demais classes, através de seus aparelhos ideológicos: seus meios de comunicação, as artes, as ciências e técnicas, toda a sua “indústria cultural”, as escolas e universidades, e tantos outros.

E, se antanho, no que diz respeito àqueles que resistiram às iniqüidades da ditadura, foi na votação contra a Lei de Anistia que se concentrou a ira dos inimigos da democracia, hoje sua ira se volta – sem esquecer o antigo alvo, e por isto mesmo – contra a aplicação da lei promulgada em 1979; contra todo avanço das políticas de direitos humanos; e contra, enfim, a instauração da Comissão da Verdade prevista no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, para que apure os crimes imprescritíveis cometidos durante o regime do pós-64.


Deuses, terror de Estado e
as tragédias contemporâneas

As tragédias, hoje, prescindem de qualquer intervenção divina. O terror de Estado, com todas as suas violências, perseguições e torturas, é o grande provedor e produtor das tragédias contemporâneas, dispensando, assim, a necessidade de quaisquer intervenções divinas ou metafísicas, que sejam capazes de desencadeá-las ou explicá-las.

Aparentemente – se nos atemos aos conceitos de matriz helênica que fundamentam o teatro do Ocidente e seus gêneros – o que acabamos de afirmar é uma contradição em termos: se tudo acontece apenas na esfera humana, estaríamos já no terreno do que se classifica de comédia. Mas essa contradição em termos é mera aparência. E não apenas por considerarmos os deuses como criações humanas. Mas por considerarmos, sobretudo que, mais do que seu caráter religioso, mais do que a intervenção divina, o que classifica uma obra como tragédia é a perda pelo homem do controle da condução do seu destino. Se na velha Hélade, a perda de controle do homem sobre seu próprio destino (o verdadeiro “núcleo duro” que entendo possa nos fazer considerar uma obra como tragédia), se dava pela intervenção das divindades que habitavam o Olimpo, nos dias em que vivemos, essa perda se dá pela intervenção do Terror de Estado. E, não esqueçamos: na velha Hélade, os destinos dos mortais estavam definidos pelos deuses. A tragédia se desencadeava, exatamente cada vez que os homens tentassem contrariá-los; tentassem dar um outro rumo às suas vidas; tentassem dizer Não, aos desígnios do Olimpo.

Durante a ditadura brasileira, por exemplo, Zeus, Hades e suas cortes foram substituídos pelos muitos majores Innocencios Fabrício De Mattos Beltrão, pelos incontáveis coronéis Carlos Alberto Brilhante Ustra ou generais Emílios Garrastazu Médici, e uma legião de delegados Romeus Tuma, Sérgios Paranhos Fleury, Fábios Lessa, Alcides Singilo, Edsels Magnotti e tantos outros que, desprovidos de qualquer Olimpo, sentavam praça nos diversos aparelhos de repressão do regime.

Sem dúvida, os deuses olímpicos e suas intervenções eram metáforas da ordem social e valores que as elites das cidades-estado da Hélade estabeleceram, de modo a perpetuar seu domínio, seu poder sobre os demais mortais. O capital, porém, dispensa toda metáfora para alcançar seus fins: a instituição do terror de Estado – escancarado ou cinicamente velado por mentiras, lhe é suficiente. Variam apenas conjunturalmente, o objeto imediato e o grau da sua intensidade e do seu caráter repressivo.

Para que fique ainda mais claro de onde partimos e aonde chegamos, ouçamos o que nos diz o professor Hélio Pellegrino, a respeito de um dos mais cruéis e vis instrumentos de que se utiliza o terror de Estado, em seu artigo “A tortura política” (1985):

“Enquanto o capitalismo aliena do trabalhador a sua força de trabalho, para com ela construir um mundo que lhe é hostil, a tortura vai muito mais longe: ela aliena do torturado o seu corpo inteiro e suas mais secretas reservas psíquicas, para dobrá-lo, achatá-lo, destruí-lo”.


Filha da Anistia, uma
tragédia contemporânea

É nesse quadro que se insere a peça “Filha da Anistia”, importante tragédia contemporânea.

E se insere brilhantemente.

Seja porque se constitui em importante contribuição para que o assunto esteja em pauta nas conversações da sociedade; seja pela inestimável contribuição para a nossa dramaturgia, tão carente de bons autores e textos; seja pelo ponto de vista que propõe, a estética na qual se engaja e a ética que a embasa.

Essa estética e essa ética a que nos referimos – que articulam e servem de alicerce para o trabalho dos dramaturgos Alexandre Piccini e Carolina Rodrigues – merecem ser tratadas por nós de uma maneira mais detida.

“Filha da Anistia” tem como objeto de trabalho e reflexão, uma tragédia familiar desencadeada pelas torturas a que foram submetidos os irmãos Jorge e Iara – militantes de uma organização clandestina da luta armada dos anos 1960-1970, e filhos de um militar da base aliada da ditadura. No entanto, diferentemente da maioria dos trabalhos produzidos no Brasil sobre o assunto na área das representações cênicas (seja teatro, cinema ou novela), o texto e sua encenação não incorrem no fascínio frente às torturas, sua estetização e, menos ainda, em sua manipulação barata no sentido de aterrorizar a platéia, de produzir os reconciliadores efeitos catárticos, ou o prazer da liberação de altas doses de adrenalina, seguido de prostração. Pranto. Riso. Orgasmo.

Esta é a sua ética.

A tortura está presente em todos os momentos da peça. No entanto, ela não é mostrada em cena, pelo menos em sua representação realista. Ela está presente pelos seus efeitos desagregadores (e destruidores) nas vidas e nos destinos dos personagens, de modo persistente, permanente, mesmo depois de 40 anos.

A ação da peça desenvolve-se no presente, ainda que garanta espaços para cenas do passado – reconstituição de episódios da memória dos personagens. Toda a ação é desencadeada a partir de uma jovem, Clara – filha de um dos irmãos militantes, em busca do pai. Essa tensão entre os dois tempos; sua des/continuidade e concomitância em cena; sua construção e montagem em corte seco produzem no espectador o distanciamento necessário à reflexão. A própria distribuição de papéis – cada ator representa dois personagens –, seus “gestus” e procedimentos de interpretação, nos dizem muito mais do alemão Bertold Brecht que do russo Constantin Stanislavski.

Isto é fortemente perceptível em diversos quadros da peça, especialmente em dois momentos:

Primeiro, na cena em que a atriz canta “Jardins de Infância” (João Bosco e Aldir Blanc), como se fosse um acalanto para seu filho. Uma cena que poderia facilmente descambar para uma pieguice capaz de levar ao pranto e à exacerbação de emoções, destruindo toda possibilidade da platéia manter um olhar crítico/analítico sobre o que lhe é oferecido. Trata-se aqui, porém, de uma representação que se desdobra entre diversas realidades: Iara, personagem do passado, canta para sua filha, Clara, que, por sua vez, canta para seu filho no presente, ao mesmo tempo em que a atriz rompe a quarta parede e canta para todos nós e para todos os filhos que ainda virão.

Essa superposição de realidades leva a um distanciamento platéia/palco, indispensável à intenção proposta pelo texto e pela direção.

Segundo, o grande monólogo do personagem Jorge. Ou melhor, o diálogo entre o jovem Jorge, militante dos anos 1960-1970, e um Jorge já envelhecido, em cujo armário tenta esconder e sufocar o primeiro. É a cena onde se desnuda a grande tragédia que o terror de Estado fez se abater sobre a existência daquele militante.
Dois personagens dilacerantes e dilacerados, filhos da cisão promovida nas salas de torturas, e cujo  resultado é um velho Jorge, quase esquizóide.
Jorge e Jorge. Jorge e seu duplo. Jorge consigo mesmo. A cena é, ao  mesmo tempo, um flash back do Jorge velho e um  flash forward do jovem militante Jorge. Uma existência cindida, um corte que não cicatriza, dor que não reverte, que retira das mãos do personagem o controle sobre seu destino.

Algo como os versos do poeta português do século 16, Francisco Sá de Miranda:

“Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
(...)”.

Agora, é assistir ao espetáculo.

Merde à vous.







Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...