Conforme notícia publicada no site Conjur, tramita na Câmara o Projeto de Lei 7.111/10, do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), que permite que a coisa julgada seja revogada caso se comprove caso de injustiça extrema, grave fraude processual ou erro grosseiro. A proposta altera o Código de Processo Civil (Lei 5.869/73).
A discussão é válida, porém, extremamente delicada, uma vez que põe em conflito princípios processuais já há muito consagrados com direitos materiais em si. A questão é: pode-se, diante de uma suposta "injustiça" claramente visível desconsiderar os mandamentos mais primários e basilares do Direito Processual? A insegurança jurídica de tal projeto sobrepor-se-á, em termos de efeitos diretos e indiretos, a eventual benefício advindo de tal medida?
Por óbvio devemos fazer um estudo maior sobre o tema. A relativização da coisa julgada, como hoje o tema é tratado, vem sendo problematizada há algum tempo em nossos tribunais, com algumas decisões que privilegiam direitos materiais insculpidos na Constituição Federal sobre o instituto da coisa julgada.
A meu ver, a proposta merece ser bem delineada para poder ser inserida no ordenamento jurídico pátrio. A relativização deve ser sempre a exceção, devida somente em casos extremos, nos quais direitos fundamentais estejam sob clara afronta. A ação rescisória, embora tenha o mesmo objetivo, possui procedimento específico, sendo uma ação à parte com regras distintas.
O entendimento dos tribunais já vem se renovando por esse caminho, como exemplifica o acórdão da Apelação Cível número 70038073979, em uma ação de investigação de paternidade: "Necessária a desconstituição da sentença, para que seja feita exumação de cadáver, como forma de obter prova real e conclusiva acerca da existência ou não dos alegados vínculos biológicos. Decisão que não representa violação à coisa julgada, em função da relativização que ela atualmente sofre, em processos como o presente, nos quais se busca a verdade real acerca de direitos fundamentais e de personalidade."
A questão não é, contudo, unanimidade, possuindo vozes numerosas e qualitativas que se opõem a tal inovação jurisprudencial. No próprio acórdão supracitado, o Desembargador Luiz Ari Azambuja Ramos foi vencido pelos demais colegas.
No nosso Tribunal Federal, o STJ, temos uma espécie de consenso jurisprudencial de que a relativização da coisa julgada apresenta-se como espécie excepcionalíssima, aplicável a poucos casos. Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que “a relativização da coisa julgada, prevista pelo art. 741 do CPC, não se aplica às sentenças que transitaram em julgado antes da inovação legislativa” (REsp 1066786 / CE). Vale trazer à baila uma série de fragmentos de julgamentos do referido tribunal que bem tratam sobre o tema:
"A nulidade pleno iure deve ser apreciada pelo órgão julgador mesmo de ofício, não se sujeitando à coisa julgada, como é o caso do defeito de citação, salvo eventual suprimento, comunicando-se aos atos subseqüentes" (REsp 100.998/SP);
“A ação civil pública, como ação política e instrumento maior da cidadania, substitui com vantagem a ação de nulidade, podendo ser intentada pelo Ministério Público objetivando afastar os efeitos da coisa julgada.” (REsp 1187297 / RJ)
“A coisa julgada, também, deverá ser relativizada quando tratar de vantagem reconhecida ao servidor, que somada à remuneração extrapole o teto constitucional”. (EDcl no AgRg no RMS 27391 / RJ)
“Da ausência de coisa julgada quando a sentença ofende abertamente o princípio constitucional da "justa indenização" - A Teoria da Coisa Julgada Inconstitucional. 7.1. O princípio da "justa indenização" serve de garantia não apenas ao particular - que somente será desapossado de seus bens mediante prévia e justa indenização, capaz de recompor adequadamente o acervo patrimonial expropriado -, mas também ao próprio Estado, que poderá invocá-lo sempre que necessário para evitar indenizações excessivas e descompassadas com a realidade. 7.2. Esta Corte, em diversas oportunidades, assentou que não há coisa julgada quando a sentença contraria abertamente o princípio constitucional da "justa indenização" ou decide em evidente descompasso com dados fáticos da causa ("Teoria da Coisa Julgada Inconstitucional"). 7.3. Se a orientação sedimentada nesta Corte é de afastar a coisa julgada quando a sentença fixa indenização em desconformidade com a base fática dos autos ou quando há desrespeito explícito ao princípio constitucional da "justa indenização", com muito mais razão deve ser "flexibilizada" a regra, quando condenação milionária é imposta à União pela expropriação de terras já pertencentes ao seu domínio indisponível, como parece ser o caso dos autos”. (REsp 1015133 / MT)
“Ação de nulidade (querella nullitatis). Coisa julgada material (relativização). Situação extraordinária (não ocorrência). 1. Admite-se a relativização da coisa julgada material em situações extraordinárias, por exemplo, quando se trata de sentença nula ou inexistente, embora haja, no Superior Tribunal, vozes que não admitem a relativização em hipótese alguma. 2. Em se tratando de sentença injusta, ou melhor, de errônea resolução da questão de fato (erro de fato), como na espécie (é o que se alega e é o que se diz), não é lícito o emprego da ação de nulidade.3. A admissão, em casos que tais, da querella nullitatis contribuiria para descaracterizar, mais e mais, a substância da coisa julgada – a sua imutabilidade.” (REsp 893477 / PR)
“Trata-se de recurso interposto por sindicato contra acórdão do TJ que assim decidiu: quando a coisa julgada espelha um resultado final que agride o sentido do justo, é possível rever, na liquidação da sentença, o erro que passa a ser inexplicável, como o da decuplicação da contribuição confederativa com multa incorporada (incidência do método punitivo também sobre o adicional, que é um grau escalonado da multa pelo atraso – art. 600 da CLT e 7º da Lei n. 6.986/1982), e que produziu uma expressão financeira incompatível com a natureza do título produzido pelo Estado-juiz (relativização da coisa julgada). Isso posto, a Turma, por maioria, deu provimento ao recurso para anular o acórdão recorrido, por entender que o tribunal de origem violou a coisa julgada, visto que ele não poderia, na fase de liquidação, alterar a parte dispositiva da sentença condenatória, entendendo que não haveria violação da coisa julgada,por se tratar de erro judiciário. Na hipótese, sendo a divergência relacionada à forma como deve ser calculado o valor devido pela parte recorrida, não há configuração de erro material capaz de desconstituir a coisa julgada. Ademais, salientou o Min. Relator que, ao sentir-se lesada com eventual vício na sentença transitada em julgado, deveria a parte ter proposto a competente ação rescisória, a teor do art. 485 do CPC, com vistas à desconstituição da coisa julgada. O Min. Luiz Fux, em seu voto-vista, entendeu não se tratar nem de relativização de coisa julgadanem de erro aritmético, mas de uma tendência realmente de transcender a coisa julgada no afã de produzir um resultado que pode ser justo sob a ótica de uns, mas injusto sob a ótica de outros, e, quanto a isso, a lei não permite que tribunal algum promova reforma da decisão, porque ou ela está eivada de ilegalidade, ou de uma injustiça passiva de modificação na própria relação processual antes do trânsito em julgado.” (REsp 612.937-SP, publicado no informativo 0379 do STJ)
“A recorrida ajuizou ação anulatória (actio querella nullitatis) para impugnar a sentença já transitada em julgado, ao fundamento de que, com a antecipação do julgamento da lide, ficou sem defesa. Nesse contexto, uma análise dos julgados do STJ quanto ao tema revela que este Superior Tribunal não é totalmente infenso a relativizar a coisa julgada, mas o faz em situações extraordinárias (tal como no caso de colisão de direitos ou princípios fundamentais). Exsurge, também, daí que o STJ admite a utilização da ação anulatória para buscar a declaração da nulidade, porém nos restritos casos de citação defeituosa, também sujeitos à via da ação rescisória. Os romanos já distinguiam as sentenças injustas das nulas, quanto a só admitir aquerella nullitatis na segunda hipótese, pois, quanto à primeira, havia o trânsito em julgado da sentença não tempestivamente impugnada viciada por erro de julgamento. No caso, tal como alegado, o juiz teria errado ao resolver a questão de fato (erro de fato), daí não se cuidar de sentença nula (recentemente nominada de “inexistente”), mas sim de sentença injusta, sujeita aos pertinentes recursos. É relevante o fato de a espécie não se ajustar ao modelo de relativização que se entende admitido no STJ, sem o qual se revela sem emprego a ação intentada. Observe-se ser mesmo caso a reclamar o uso da ação rescisória, que foi também ajuizada, daí a alegação de litispendência (art. 267, V, do CPC). Precedentes citados: REsp 194.029-SP, DJ 2/4/2007; REsp 706.987-SP, DJe 10/10/2008; REsp 226.436-PR, DJ 4/2/2002; REsp 427.117-MS, DJ 16/2/2004; REsp 107.248-GO, DJ 29/6/1998; REsp 765.566-RN, DJ 31/5/2007; REsp 622.405-SP, DJ 20/9/2007; REsp 445.664-AC, DJ 7/3/2005.” (REsp 893.477-PR, publicado no informativo 0408 do STJ)
“A Turma entendeu que o parágrafo único do art. 741 do CPC, introduzido pela MP n. 2.180-35/2001, apesar de ter caráter de norma processual, não pode ser aplicado retroativamente, submetendo-se ao princípio do art. 5º, XXXVI, da CF/1988 (a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada). Assim, só se admite a sua aplicação à sentença com trânsito em julgado ocorrido posteriormente à sua vigência. Contudo, no caso, embora a norma processual seja anterior ao trânsito em julgado, somente após este é que o STF declarou constitucional o art. 20, I, da Lei n. 8.880/1994 (RE 313.382-SC). O objetivo da norma contida no art. 741, parágrafo único, do CPC é evitar que títulos judiciais incompatíveis com a constituição sejam executados. Ainda entendeu que não se pode prestigiar a interpretação que adota a relativização da coisa julgada, levando-se em conta a data da interposição dos embargos de devedor, sem observar a data da decisão do STF, se posterior ao trânsito em julgado. Na hipótese, a suprema corte afastou a incerteza quanto à inconstitucionalidade, ao proclamar constitucional o art. 20, I, da Lei n. 8.880/1994, ou seja, desde o seu nascedouro e até antes do pronunciamento da corte maior era de absoluta normalidade para com o ordenamento jurídico.” (REsp 1.049.702-RS, publicado no informativo 0387 do STJ).
“A Turma entendeu que o parágrafo único do art. 741 do CPC, introduzido pela MP n. 2.180-35/2001, apesar de ter caráter de norma processual, não pode ser aplicado retroativamente, submetendo-se ao princípio do art. 5º, XXXVI, da CF/1988 (a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada). Assim, só se admite a sua aplicação à sentença com trânsito em julgado ocorrido posteriormente à sua vigência. Contudo, no caso, embora a norma processual seja anterior ao trânsito em julgado, somente após este é que o STF declarou constitucional o art. 20, I, da Lei n. 8.880/1994 (RE 313.382-SC). O objetivo da norma contida no art. 741, parágrafo único, do CPC é evitar que títulos judiciais incompatíveis com a constituição sejam executados. Ainda entendeu que não se pode prestigiar a interpretação que adota a relativização da coisa julgada, levando-se em conta a data da interposição dos embargos de devedor, sem observar a data da decisão do STF, se posterior ao trânsito em julgado. Na hipótese, a suprema corte afastou a incerteza quanto à inconstitucionalidade, ao proclamar constitucional o art. 20, I, da Lei n. 8.880/1994, ou seja, desde o seu nascedouro e até antes do pronunciamento da corte maior era de absoluta normalidade para com o ordenamento jurídico.” (REsp 1.049.702-RS, publicado no informativo 0387 do STJ).
O Supremo também já foi convocado para discutir o tema, em especial no julgamento do HC 95354, julgado em 14/06/2010. Restou decidido, de forma conservadora que:
“A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de específica ação autônoma de impugnação (ação rescisória) que haja sido proposta na fluência do prazo decadencial previsto em lei, pois, com o exaurimento de referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento posterior, tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito de fiscalização incidental de constitucionalidade. - A decisão do Supremo Tribunal Federal que haja declarado inconstitucional determinado diploma legislativo em que se apóie o título judicial, ainda que impregnada de eficácia “ex tunc”, como sucede com os julgamentos proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758 – RTJ 164/506-509 – RTJ 201/765), detém-se ante a autoridade da coisa julgada, que traduz, nesse contexto, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, “in abstracto”, da Suprema Corte.”
Seguindo a transcrição do julgamento, a Suprema Corte decidiu a respeito da relativização da coisa julgada o que segue:
“Nem se diga, ainda, para legitimar a pretensão jurídica da parte ora recorrente, que esta poderia invocar, em seu favor, a tese da “relativização” da autoridade da coisa julgada, em especial da (impropriamente) denominada “coisa julgada inconstitucional”, como sustentam alguns autores (...). Tenho para mim que essa postulação, se admitida, antagonizar-se-ia com a proteção jurídica que a ordem constitucional dispensa, em caráter tutelar, à “res judicata”. Na realidade, a desconsideração da “auctoritas rei judicatae” implicaria grave enfraquecimento de uma importantíssima garantia constitucional que surgiu, de modo expresso, em nosso ordenamento positivo, com a Constituição de 1934. A pretendida “relativização” da coisa julgada provocaria conseqüências altamente lesivas à estabilidade das relações intersubjetivas, à exigência de certeza e de segurança jurídicas e à preservação do equilíbrio social, valendo destacar, em face da absoluta pertinência de suas observações, a advertência de ARAKEN DE ASSIS (“Eficácia da Coisa Julgada Inconstitucional”, “in” Revista Jurídica nº 301/7-29, 12-13): “Aberta a janela, sob o pretexto de observar equivalentes princípios da Carta Política, comprometidos pela indiscutibilidade do provimento judicial, não se revela difícil prever que todas as portas se escancararão às iniciativas do vencido. O vírus do relativismo contaminará, fatalmente, todo o sistema judiciário. Nenhum veto, ‘a priori’, barrará o vencido de desafiar e afrontar o resultado precedente de qualquer processo, invocando hipotética ofensa deste ou daquele valor da Constituição. A simples possibilidade de êxito do intento revisionista, sem as peias da rescisória, multiplicará os litígios, nos quais o órgão judiciário de 1º grau decidirá, preliminarmente, se obedece, ou não, ao pronunciamento transitado em julgado do seu Tribunal e até, conforme o caso, do Supremo Tribunal Federal. Tudo, naturalmente justificado pelo respeito obsequioso à Constituição e baseado na volúvel livre convicção do magistrado inferior. Por tal motivo, mostra-se flagrante o risco de se perder qualquer noção de segurança e de hierarquia judiciária. Ademais, os litígios jamais acabarão, renovando-se, a todo instante, sob o pretexto de ofensa a este ou aquele princípio constitucional. Para combater semelhante desserviço à Nação, urge a intervenção do legislador, com o fito de estabelecer, previamente, as situações em que a eficácia de coisa julgada não opera na desejável e natural extensão e o remédio adequado para retratá-la (...). Este é o caminho promissor para banir a insegurança do vencedor, a afoiteza ou falta de escrúpulos do vencido e o arbítrio e os casuísmos judiciais.” (grifei) Esse mesmo entendimento - que rejeita a “relativização” da coisa julgada em sentido material – foi exposto, em lapidar abordagem do tema, por NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY (“Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante”, p. 715/717, itens ns. 28 e 30, e p. 1.132, item n. 14, 11ª ed., 2010, RT): “28. Coisa julgada material e Estado Democrático de Direito. A doutrina mundial reconhece o instituto da coisa julgada material como ‘elemento de existência’ do Estado Democrático de Direito (...). A ‘supremacia da Constituição’ está na própria coisa julgada, enquanto manifestação do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF 1.º ‘caput’), não sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo de qualquer outro instituto constitucional. Quando se fala na intangibilidade da coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito, que não pode ser apequenado por conta de algumas situações, velhas conhecidas da doutrina e jurisprudência, como é o caso da sentença injusta, repelida como irrelevante (...) ou da sentença proferida contra a Constituição ou a lei, igualmente considerada pela doutrina (...), sendo que, nesta última hipótese, pode ser desconstituída pela ação rescisória (CPC 485 V). (...) O risco político de haver sentença injusta ou inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave do que o risco político de instaurar-se a insegurança geral com a relativização (‘rectius’: desconsideração) da coisa julgada. (...) Inconstitucionalidade material do CPC 741 par. ún. Título judicial é sentença transitada em julgado, acobertada pela autoridade da coisa julgada. Esse título judicial goza de proteção constitucional, que emana diretamente do Estado Democrático de Direito (CF 1º ‘caput’), além de possuir dimensão de garantia constitucional fundamental (CF 5º XXXVI). Decisão ‘posterior’, ainda que do STF, não poderá atingir a coisa julgada que já havia sido formada e dado origem àquele título executivo judicial. A decisão do STF que declara inconstitucional lei ou ato normativo tem eficácia retroativa ‘ex tunc’, para atingir situações que estejam se desenvolvendo com fundamento nessa lei. Essa retroatividade tem como limite a ‘coisa julgada’ (Canotilho. ‘Dir. Const.’, p. 1013/1014). Não pode alcançar, portanto, as relações jurídicas firmes, sobre as quais pesa a ‘auctoritas rei iudicatae’, manifestação do Estado Democrático de Direito (do ponto de vista político-social-coletivo) e garantia constitucional fundamental (do ponto de vista do direito individual, coletivo ou difuso). A esse respeito, ressalvando a coisa julgada dos efeitos retroativos da decisão de inconstitucionalidade, embora nem precisasse fazê-lo, é expressa a CF portuguesa (art. 282, n. 3, 1ª parte). Caso se admita a retroação prevista na norma ora comentada como possível, isso caracterizaria ofensa direta a dois dispositivos constitucionais: CF 1º ‘caput’ (Estado Democrático de Direito, do qual a coisa julgada é manifestação) e 5º XXXVI (garantia individual ou coletiva da intangibilidade da coisa julgada). A norma, instituída pela L 11232/05, é, portanto, materialmente inconstitucional. Não se trata de privilegiar o instituto da coisa julgada sobrepondo-o ao princípio da supremacia da Constituição (...). A coisa julgada é a própria Constituição Federal, vale dizer, manifestação, dentro do Poder Judiciário, do Estado Democrático de Direito (CF 1º ‘caput’), fundamento da República.” (grifei) Absolutamente correto, pois, o magistério de autores – como JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (“Considerações Sobre a Chamada ‘Relativização’ da Coisa Julgada Material” “in” Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nº 62/43-69); ROSEMIRO PEREIRA LEAL (“Relativização Inconstitucional da Coisa Julgada – Temática Processual e Reflexões Jurídicas”, p. 3/22, 2005, Del Rey); SÉRGIO GILBERTO PORTO (“Cidadania Processual e Relativização da Coisa Julgada” “in” Revista Jurídica nº 304/23-31) e LUIZ GUILHERME MARINONI e DANIEL MITIDIERO (“Código de Processo Civil”, p. 716/717, item n. 9, 2ª ed., 2010, RT) – que repudiam a tese segundo a qual mostrar-se-ia viável a “relativização” da autoridade da coisa julgada, independentemente da utilização ordinária da ação rescisória, valendo relembrar, no ponto, a advertência de LEONARDO GRECO (“Eficácia da Declaração ‘Erga Omnes’ de Constitucionalidade ou Inconstitucionalidade em Relação à Coisa Julgada Anterior” “in” “Relativização da Coisa Julgada”, p. 251/261, 2ª ed./2ª tir., 2008, JusPODIVM), para quem se revelam conflitantes, com a garantia constitucional da “res judicata”, as regras legais que autorizam a desconsideração da coisa julgada material em face de declaração de inconstitucionalidade (ou de uma nova interpretação constitucional) emanada do Supremo Tribunal Federal, à semelhança do que prescrevem, p. ex., o art. 475-L, § 1º, e o art. 741, parágrafo único, ambos do Código de Processo Civil: “2. Para examinar o conflito entre a coisa julgada e a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, assim como para avaliar se a demonstrada vulnerabilidade da coisa julgada é compatível com o Estado Democrático de Direito instituído entre nós a partir da Constituição de 1988, considero necessário assentar uma segunda premissa, ou seja, se a coisa julgada é um direito fundamental ou uma garantia de direitos fundamentais e, como tal, se a sua preservação é um valor humanitário que mereça ser preservado em igualdade de condições com todos os demais constitucionalmente assegurados; ou, se, ao contrário, é apenas um princípio ou uma regra de caráter técnico processual e de hierarquia infra-constitucional, que, portanto, deva ser preterida ao primado da Constituição e da eficácia concreta dos direitos fundamentais e das demais disposições constitucionais. (...) Todavia, parece-me que a coisa julgada é uma importante garantia fundamental e, como tal, um verdadeiro direito fundamental, como instrumento indispensável à eficácia concreta do direito à segurança, inscrito como valor e como direito no preâmbulo e no ‘caput’ do artigo 5º da Constituição de 1988. A segurança não é apenas a proteção da vida, da incolumidade física ou do patrimônio, mas também e principalmente a segurança jurídica. (...) A segurança jurídica é o mínimo de previsibilidade necessária que o Estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas quais pode travar relações jurídicas válidas e eficazes. (...) A coisa julgada é, assim, uma garantia essencial do direito fundamental à segurança jurídica. Em recente estudo sobre as garantias fundamentais do processo, recordei que, na jurisdição de conhecimento, a coisa julgada é garantia da segurança jurídica e da tutela jurisdicional efetiva. Àquele a quem a Justiça reconheceu a existência de um direito, por decisão não mais sujeita a qualquer recurso no processo em que foi proferida, o Estado deve assegurar a sua plena e definitiva fruição, sem mais poder ser molestado pelo adversário. Se o Estado não oferecer essa garantia, a jurisdição nunca assegurará em definitivo a eficácia concreta dos direitos dos cidadãos. Por outro lado, a coisa julgada é uma conseqüência necessária do direito fundamental à segurança (artigo 5º, inciso I, da Constituição) também dos demais cidadãos, e não apenas das partes no processo em que ela se formou, pois todos aqueles que travam relações jurídicas com alguém que teve determinado direito reconhecido judicialmente devem poder confiar na certeza desse direito que resulta da eficácia que ninguém pode negar aos atos estatais”
Por tudo que acima foi exposto, vemos que a controvérsia que gira em torno desse tema é grande e de forte repercussão. Se aprovado, o projeto de Lei certamente será impugnado por alguns por ser inconstitucional e, conforme vemos pela orientação do Supremo, com grandes chances de ter sua inconstitucionalidade declarada. Afinal, se a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXVI garante que a lei não prejudicará a coisa julgada, como poderá o legislador ordinário descumprir frontalmente tal comando? O que resta é esperar e ver.
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